C O R P O V E S T I D O: C U L T U R A E N A T U R E Z A
Laura Miranda é uma artista que trabalha de modo bastante particular a relação entre cultura e natureza. Em boa parte das suas obras, essa relação é abordada a partir de uma investigação sobre o corpo, especialmente no que tange aos seus modos de interação com o entorno, com o ambiente e com o espaço mais amplo da cultura. Embora vinculados a uma natureza orgânica que nos ultrapassa, nossos corpos são também artefatos, na medida em que suportam nossas intenções e desejos. Tal compreensão é evidente para Laura há muitos anos.
Em meados dos anos 1990, a artista resolve explorar tanto a intencionalidade quanto o acaso envolvido na impressão do seu corpo úmido sobre folhas de papel arroz. São trabalhos delicadíssimos, em que cada pequena ruga do papel corresponde a uma reação física única e irreprodutível. Poucos anos depois, em 2001, a artista realiza a obra Corpo Impresso, em parceria com Denise Bandeira. Como no trabalho anterior, Laura mostra-se disposta a explorar as relações entre corpo e ambiente. Para tanto, cobre o próprio corpo com pó de carvão e em seguida se esfrega sobre folhas de papel dispostas no chão. O resultado são papéis manchados, quase abstratos, que trazem na superfície os vestígios dessas ações. Tanto nos trabalhos com papel arroz quanto nesses, realizados com carvão, o que está em questão é a possibilidade da interação do corpo da artista com um determinado meio. Mas é uma interação assimétrica, é claro. Num caso como noutro, o papel, enrugado ou manchado, sofre alterações irreversíveis, ao passo que o corpo da artista, úmido ou coberto de carvão, só se altera temporariamente, contorcido em gestos. Seja como for, temos aqui duas forças gerais que se alimentam mutuamente e que serão importantes para a compreensão da trajetória recente da artista: de um lado, um meio circundante (o papel, no caso) que busca se adaptar às exigências do corpo; e de outro, as adaptações temporárias dos corpos (eventualmente úmidos, sujos, performáticos) às exigências do meio.>
Nos últimos dez anos, a poética de Laura Miranda tem girado ao redor dessas duas forças, explorando as aproximações e os distanciamentos entre corpo e meio e entre meio e corpo. Para a artista, tal exploração consiste numa forma de equacionar o eu e o outro, os desejos do indivíduo e os tabus da sociedade. Afinal, tornado público, o corpo nu expõe as marcas de sua crua e eterna solidão: é frágil, moralmente vergonhoso e impossibilita qualquer forma de distinção simbólica. Não à toa, é o corpo vestido, e não o despido, que num dado momento passa a ocupar o centro das investigações poéticas de Laura. Tais investigações, todavia, variam conforme as forças gerais acima mencionadas, o que nos permite perceber, na trajetória da artista, duas posturas complementares mas distintas.
Na primeira delas, o corpo se retrai e ficamos apenas com as roupas, ou melhor, com simulacros de roupas, tratados como lastros da memória coletiva e individual. Gosto de pensar esses casos como se fossem “roupas simuladas”. Para esclarecer alguns aspectos dessa estratégia poética, mencionarei, no próximo tópico, alguns exemplos dessa abordagem. A segunda postura, por sua vez, nasce de um encontro anunciado: de um lado, o corpo que se literaliza, “performático”, e de outro, a roupa, que, afeita a essa corporeidade concreta, torna-se uma ampliação de limites, uma espécie de retorno ao arcaísmo da natureza, como se o próprio meio ambiente pudesse, por vezes, ser tratado como veste. Vejo essa postura como uma ação – a ação de “vestir o mundo” – e retornarei a ela em outro tópico, através de alguns exemplos. Ao final do texto, em tópico à parte, concluirei com alguns apontamentos gerais sobre o modo como a artista se posiciona diante da história cultural do corpo.
R O U P A S S I M U L A D A S No tocante às roupas simuladas, merecem destaque as Vestes, que integram o projeto Spirare, também realizado em parceria com Denise Bandeira, entre 2003 e 2004. Cada Veste individual consiste em diversas lâminas moles, de látex, que, sobrepostas umas às outras e dispostas de certa forma sobre um cabide pendurado, lembram roupas arcaicas, acintosamente artesanais. Bastante irregulares, essas peças apresentam marcas orgânicas, manchas de mil cores, vestígios diversos de operações passadas. Cada peça é resultado de um processo exploratório, que evoca os vazios da memória. E para Laura Miranda, cumpre dizer, a memória nasce de lugares concretos, espaços de vivência efetiva, como no caso específico da represa do Passaúna, em Curitiba, onde a artista reside e desenvolve parte de suas obras. A região, colonizada por imigrantes italianos e poloneses, foi drasticamente alterada pela construção da represa, o que levou à desapropriação de muitas residências tradicionais, várias delas submersas ou abandonadas. Interessada por esse contexto, Laura dispôs-se a evocar os corpos simbólicos que outrora habitaram aquelas casas abandonadas: derramou látex nas paredes e no chão de uma das casas marcadas pelo tempo, para em seguida recriar, com tais modelagens, toda a série das Vestes. Na mesma linha, Laura Miranda criou, em 2006, a série Sapatos. Mais uma vez, estamos diante da simulação de roupas. Para a artista, trata-se de uma possibilidade de evocar a ausência de certos corpos simbólicos, que permanecem apenas na memória. São sapatos, claro, frágeis e leves, quase flutuantes, arranjados aos pares e dispostos de algum modo sobre o mundo. Mas, inutilizáveis pelos pés, não são propriamente sapatos, e sim retalhos de tecidos de família, roupas da avó, pedaços de toalhas e acolchoados, excertos, enfim, de uma memória individual que se quer coletiva.
Em certas ocasiões, a evocação do corpo ausente através dos simulacros de roupa ganha um caráter autônomo, assumindo novas formas de linguagem. É o caso, por exemplo, da série Entre, realizada entre 2004 e 2005, em que a artista, adaptando a técnica de coloração conhecida como batique, recorta e remonta inúmeros filetes de papel tingido, criando estruturas orgânicas de considerável sutileza plástica. Enquanto montagem, os trabalhos lembram as Vestes, dada a sobreposição de camadas maleáveis que, pela ação da gravidade, tendem ao chão. Em termos evocativos, contudo, se alguns exemplares da série Entre ainda permitem analogias com a forma-roupa, isso se dá de um modo mais independente que nas Vestes, e aqui encontramos um dos possíveis limites das tais roupas simuladas.
V e s t i r o m u n d o
Como vemos, os simulacros de roupas podem ser entendidos como meios que evocam a memória de corpos ausentes. Todavia, quando se trata de operar com a presença dos corpos, Laura Miranda aposta na adaptabilidade do corpo ao meio, seja este uma veste, um ambiente ou mesmo a soma de ambos, o que implica uma resposta poética que é menos um objeto e mais uma rede de relações. Nessas ocasiões, diferente do que ocorre com Vestes, Sapatos ou Entre, as obras não aderem às exigências museológicas dos espaços expositivos; ao contrário, o que vemos ali são ações interpessoais que se abrem à relação com um cenário sublime e imprevisível, via de regra composto de terra, água, grama encharcada, animais de todo tipo e folhagens que embrulham o corpo.
Bom exemplo nesse sentido é a obra coletiva Zênite. Realizada na reserva do Passaúna, em 2010, por um grupo de dez pessoas (nove mulheres, incluindo Laura Miranda, e um único homem, o fotógrafo Lauro Borges), a experiência consistiu numa vivência coletiva que, ao longo de meses, propôs uma rede de interações entre corpos e meio ambiente, incluindo a confecção de roupas e adereços. O resultado, registrado em fotografias e num vídeo em stop motion, tem ares de ritual antropológico. Num ponto qualquer, uma mulher com um vestido azul coberto com folhagens caminha com vagar, absorta no próprio passo, como se raízes a refreassem, evidenciando o tempo rebaixado da natureza. Noutro lugar, uma pessoa com uma máscara de capivara ensaia uma pesca improvável, apontando uma flecha com cuidado para dentro de um pequeno córrego de água lamacenta, como se o mimetismo mágico da vida animal fosse garantia de sobrevivência. As roupas, em Zênite, têm, portanto, dupla função: mediam a relação com a natureza, evocando um ritualismo ancestral, e servem de pretexto para as interações dos próprios participantes, que passam boa parte do tempo trabalhando na execução dessas estranhas vestimentas.
Outro exemplo é a excelente obra Lago Amarelo, realizada em 2006. Nela, temos três elementos centrais da poética de Laura Miranda: o corpo, a veste e o ambiente idílico do Passaúna. Realizada em parceria com a performer Mônica Infante, a ação consiste num jogo de suaves interações entre esses elementos. Em meio ao bosque, vemos um imenso tecido amarelo, com dezenas de metros. O panejamento assume a escala da paisagem, misturando-se à amplidão do seu entorno. Sobre o tecido, uma mulher executa movimentos muito lentos, reflexivos, rolando sobre si mesma ou permanecendo imóvel, como se pudesse escutar a respiração do mundo, saboreando, em absoluto silêncio, algum manjar invisível que lhe atravessa os sentidos. O gigantesco pano, tratado como uma espécie de roupa da performer, embala também os meandros da paisagem, ora enroscando-se nos galhos baixos de uma árvore maciça, ora boiando nas águas tranquilas do lago. A artista lhe segue o fluxo, deixando-se escorregar para dentro d’água. Imersos num silêncio gritante, corpo e tecido enleiam-se à placidez emblemática da reserva, dispersando toda aquela cor no ambiente, como se fosse possível vestir a própria natureza.
D E S V E S T I R A M O D A
Seja nos simulacros de roupas, seja nas ações colaborativas e “performáticas”, a trajetória poética de Laura Miranda assume uma postura definida em relação à história cultural do corpo. Trata-se de uma característica geral, que atravessa boa parte de suas obras, algo como uma visão de mundo que, por vezes, escapa pelas frestas de seu processo formativo. Mas de que história estamos falando? Bem, de saída, é preciso ter em mente que a natureza é nossa pele primeira, e que o corpo só se torna artifício, ou seja, cultura, quando consegue divisar seus limites, separando-se do meio que lhe envolve. Tal separação consiste numa operação humana, primeva, essencial; uma tarefa que desde os primórdios coube à roupa e ao ato de se vestir. Proteção, pudor e distinção simbólica, eis a complexa construção cultural que a roupa nos oferece. Protegidos das intempéries, ganhamos o mundo, dando início às grandes migrações. Cobertos, evitamos a vergonha e nos defendemos dos julgamentos alheios. Decorados e singularizados, nos diferenciamos dos demais, nos mostramos desejáveis e, sobretudo, desejantes. Sublimando os impulsos narcísicos e autoeróticos mais primordiais, apostamos, todos nós, nas vantagens coletivas do vestir-se. Da antiguidade ao antigo regime, as diferenças entre as vestes cortesãs e as populares demarcavam com clareza as rígidas hierarquias sociais. Com a modernidade, contudo, a partilha democrática imposta pelo lavor revolucionário implicou o apagamento dessas distinções, ao menos no plano simbólico. Para os homens, principais agentes da esfera pública moderna, as roupas tenderam à homogeneização, restando às mulheres, inicialmente, a possibilidade de exposição pública do processo particular de individuação. Aliado à mecanização generalizada do mundo, esse processo, demarcado por evidentes diferenças de gênero, deu origem àquela irresistível industrialização do vestir-se a que chamamos moda. Dessa forma, não admira que Laura Miranda, ela mesma uma artista-mulher há muito interessada na relação entre corpo e ambiente, tenha feito das roupas uma verdadeira plataforma de pensamento e expressão. Costuras, rendas, crochês, tingimentos e toda sorte de saberes análogos são dispositivos bastante familiares à artista. Por outro lado, nada mais distante do mundo da moda que as obras de Laura. Em oposição ao tempo fugaz da moda, característico das sociedades “quentes”, modernas, vemo-nos diante da evocação, ainda que breve, do tempo vastíssimo das sociedades “frias”, ditas primitivas. Em linhas gerais, a artista se propõe uma investigação demorada, anamnésica e por isso mesmo contrária tanto à obsolescência programada do mundo fashion quanto à lógica novidadeira das “tendências” e das “coleções”. No plano das roupas simuladas, como vimos, a artista atua no avesso da moda, construindo vestes inutilizáveis, de aparência desfigurada e primitiva, como se fosse preciso dar um passo atrás, e não à frente, para resgatar as necessidades primeiras do ato de se vestir, restituindo assim os corpos à sua própria natureza. Da mesma forma, em se tratando de demarcar a interação efetiva com o entorno, quando corpos reais pedem roupas igualmente reais, a artista se afasta da ambiência urbana da moda para dialogar com a paisagem natural. Por isso, inclusive, o eterno retorno de Laura à reserva do Passaúna, em Curitiba, onde mora e trabalha. E por isso também, igualmente, sua tendência a desvestir a moda para revestir o mundo, lançando mão de um simbolismo atávico que, ainda hoje, nos cabe reconsiderar.
A R T U R F R E I T A S é crítico, historiador da arte, doutor pela UFPR, professor do curso de Artes Visuais da FAP/UNESPAR e do Programa de Pós-Graduação em História (Mestrado e Doutorado) da UFPR.
In the mid-1990s, the artist decided to explore both the intentionality and chance involved in imprinting her wet body on sheets of rice paper. They are extremely delicate works, where every tiny fold in the paper corresponds to a unique and irreproducible physical reaction. Some years later, in 2001, the artist creates the work Corpo Impresso (Imprinted Body) in partnership with Denise Bandeira. As in her previous work, Laura is willing to explore the relationship between body and environment. For such, she covers her whole body with powdered charcoal and then rubs herself against the paper sheets placed on the floor. The result is stained paper, almost abstracts, which bear on their surface the traces of these actions. In her works with rice paper and in the latter, with charcoal, what is at stake is the possibility of interaction between the artist’s body with a certain medium. But it is an asymmetrical interaction, of course. In both cases, paper, folded or stained, suffers irreversible changes, while the artist´s body, wet or covered with charcoal is only changed temporarily, crisped in gestures. Either way, here we have two general forces that feed each other and that will be very important to understand the artist´s recent trajectory: on one hand, a surrounding medium (paper, in this case) tries to adapt to the demands of the body; and on the other, the temporary adaptations of the bodies (wet, dirty, performatic) to the demands of the environment. In the past 10 years, Laura Miranda´s poetics has pivoted on these two forces; exploring approximations and removals between body and environment and between environment and body. For the artist, such exploration consists in a form of equating the self and the other, the desires of the individual and the taboos of society. After all, made public, the naked body exposes the marks of its raw and eternal solitude: it is fragile, morally shameful, and renders impossible any form of symbolic distinction. It is not by chance that it is the dressed body and not the naked body that at a certain moment in time begins to occupy the center of Laura´s poetic investigations. Such investigations, however, vary according to the general forces mentioned above, which allows us to perceive in the artist´s trajectory two complementary, but distinct stances.
In the first, the body withdraws and we are left only with the clothes, of better, with the simulacrum of clothes, treated as ballasts of collective and individual memory. I like to think that about them as if they were ‘simulated clothes’. In order to clarify aspects of this poetic strategy, in the next topic I will give examples of this approach. The second stance, in turn, is born from an announced encounter: on one hand, there is the body that becomes literal ‘performatic’, and on the other, the clothes, that all for this concrete corporeity, becomes an amplification of limits, a kind of return to the archaism of nature, as if the environment could be, at times, be treated as clothes. I see this stance as an action – the action of ‘dressing the world’ – and I will come back to it in another topic, by way of examples. At the end of the text, in a separate topic, I will conclude with some general remarks on the way the artist positions herself vis-à-vis the cultural history of the body.
SIMULATED CLOTHES
As far as simulated clothes go, Vestes (Clothes) deserves to be mentioned as an integral part of the Spirare project, also a partnership with Denise Bandeira, between 2003 and 2004. Each individual veste (garment) consists of several soft latex layers that, juxtaposed and hung in different ways are reminiscent of archaic clothes, blatantly artisanal. Very irregular, these pieces display organic marks, stains of a thousand colors, several traces of past operations. Each piece is the result of an exploratory process that evokes the blanks of memory. And for Laura Miranda, it should be added, memory is born from concrete places, spaces of actual living, as in the specific case of the Passaúna dam, in Curitiba, where the artist lives and develops some of her work. The area was settled by Italian and Polish immigrants, and was drastically changed by the building of the dam, which led to the expropriation of many traditional households, many of them submerged or abandoned. Interested in this context, Laura decided to evoke the symbolic bodies that used to live in those abandoned houses: she poured latex on the walls and the floor of one of these houses marked by time, and then recreated all the Vestes (Clothes) series using theses molds.
Along the same lines, Laura Miranda created, in 2006, the Sapatos (Shoes) series. Once again, we find ourselves before simulated clothes. For the artist, this is a possibility of evoking the absence of certain symbolic bodies that remain only in memory. They are shoes, of course, fragile and light, almost floating, arranged in pairs and somehow displayed above the world. But unfit for use, they are not shoes, per se, but instead, bits of family fabrics, Grandma’s clothes, patches of tablecloths and comforters, excerpts of some individual memory that wants to be rendered collective.
On occasion, the evocation of the absent body by way of the clothes simulacrums gains an autonomous character taking on new language forms. It is the case, for instance, of the Entre (In-Between) series, produced between 2004 and 2005, where the artist adapts the dying technique, known as batik, cuts and reassembles numerous threads of colored paper, and creates organic structures of considerable plastic subtlety. As an assembly, the works resemble Vestes (Clothes), thanks to the juxtaposition of the malleable layers that, due to gravity, lean towards the ground. In evocative terms, however, if some pieces of the Entre (In-Between) series still allow analogies with the form-clothes, it does so in a much more independent way than in Vestes (Clothes); and this is where we find one of the possible limits of the so-called simulated clothes.
DRESSING THE WORLD
As it can be seen, the clothes simulacrums can be understood as means that evoke the memory of absent bodies. However, when it comes to operating with the presence of the bodies, Laura Miranda bets on the adaptability of the body to the environment, be it a piece of clothes, a setting, or even a sum of both, which implies a poetic response that is less an object and more a network of relationships. In such occasions, unlike what happens in Vestes (Clothes), Sapatos (Shoes), or Entre (In-Between), the works do not adhere to the museological demands of exhibition spaces; conversely, what we see are interpersonal actions that open themselves up to the relationship with a sublime and unpredictable setting, more often than not comprised of earth, water, soggy grass, animals of all kinds, and foliage that wrap the body.
A good example is the group work Zênite (Zenith). Performed at the Passaúna reserve, in 2010, by a group of ten people (nine women, including Laura Miranda, and one man, photographer Lauro Borges), the experience was a collective experiencing that throughout the months, proposed a network of interactions between the bodies and the environment, including the making of clothes and props. The result, registered by photos and a stop-motion video, takes on the appearance of an anthropological ritual. In an uncertain point, a woman wearing a blue dress covered with foliage walks slowly, enthralled with her own steps, as if roots were trying to slow her down, accentuating nature’s lower tempo. Elsewhere, a person wearing a capybara mask rehearses an unlikely fishing, carefully pointing an arrow into a small muddy stream, as if the magical mimicry of animal life were an assurance of survival. The clothes, in Zênite (Zenith) have thus a double function: to mediate the relationship with nature by evoking an ancestral ritualism, and to serve as a pretext for the interaction among the participants, who spend most of their time working in the making of these strange clothes.
Another example is the excellent work Lago Amarelo (Yellow Lake), performed in 2006. There we have three central elements of Laura Miranda’s poetics: the body, the clothes, and the idyllic environment of the Passaúna. Conducted in partnership with performer Mônica Infante, the action consists of a play of gentle interactions among these elements. In the middle of the woods we see a huge piece of yellow fabric, tens of meters long. The fabric takes on the scale of the landscape, merging with the vastness of its surroundings. On the fabric, a woman performs very slow, reflexive movements, rolling over herself or remaining motionless, as if she could hear the world breathe, savoring, in absolute silence, some invisible delicacy that pervades her senses. The huge fabric, treated as some kind of the performer’s clothes, also shrouds the meanders of the landscape, either getting tangled in the lower branches of a massive tree, or floating on the tranquil waters of the lake. The artist follows this flow and allows herself to slide into the water. Immersed in crying silence, body and fabric merge in the emblematic placidity of the reserve, dispersing all that color in the environment, as if it were possible to shroud nature.
Be it in clothes simulacrums, or in collaborative performance actions, Laura Miranda’s poetic trajectory takes on a definite stance in regard to the cultural history of the body. It is a general characteristic that cuts through most of her works, something like a weltanschauung that, sometimes escapes through cracks in her formative process. But what histories are we talking about?
Well, to begin with, it is necessary to keep in mind that nature is our first skin and that the body only becomes artifice, that is, culture, when it succeeds in devising its limits, separating from the medium that involves it. Such separation consists of a human operation, primeval, essential; a task that from the very beginning was up to clothes and the act of dressing to perform. Protection, modesty, and symbolic distinction, this is the complex cultural construction that clothes provides us with. Protected from the elements, we take to the world, giving rise to the great migrations. Covered, we avoid shame and defend ourselves from the judgment of others. Decorated and singularized, we differentiate ourselves from others, present ourselves as desirable and, most of all, desiring.
Sublimating the most primordial narcissistic and self-erotic impulses, we bet, all of us, on the collective advantages of wearing clothes. From antiquity to the old regime, the differences between the clothes of courtesans and popular clothing clearly marked the rigid social hierarchies. With modernity, however, the democratic sharing imposed by revolutionary labor implied the effacement for these distinctions, at least on the symbolic level. For men, the main agents of the modern public sphere, clothes tended toward homogenization; it was left to women, initially, the possibility of public exposure of the private individuation process. Combined with the world’s generalized mechanization, this process, demarcated by evident gender differences, gave rise to the irresistible industrialization of dressing that we call fashion.
Thus, it is not surprising that Laura Miranda, a woman-artist long interested in the relationship between the body and the environment, turned clothes into her true thought and expression platform. Sewing, laces, crocheting, dying, and all sorts of analogous knowledge, are very familiar devices to her. Conversely, there is nothing more distant from the world of fashion than Laura’s works. In opposition to fashion’s fleeting time, typical of “hot”, modern societies, we are faced with the evocation, even if briefly, of the very vast time of so-called “cold”, primitive societies. In broad lines, the artist proposes a long and amnesic investigation and, for this very reason, contrary to both the programmed obsolescence of the fashion world and the newsy logic of “trends” and “collections”.
On the level of simulated clothes, as previously seen, the artist acts on the reverse of fashion, by making unwearable clothes, of disfigured and primitive appearance, as if it were possible to take a step back, and not forward, to recover the first needs dictated by the act of dressing, and thus restituting the bodies to their very nature. In this way, by demarcating the actual interaction with the surroundings, when real bodies ask for equally real clothes, the artist steps away from the urban environment of fashion to dialog with the natural landscape. This explains Laura’s frequent return to the Passaúna reserve, in Curitiba, where she lives and works. And also to her tendency to undress fashion to dress the world, using an atavistic symbolism that, even today, is up to us to reconsider.
Por que escolher um percurso no mato e um riacho? Como produzir subjetividades singulares à margem das autoestradas? Indivíduo, animal e habitat foram se misturando pelos trajetos e, então, outras experiências se potencializaram. A escolha de linguagens, como desenho e fotografia, ressaltou os índices da origem luminosa e maquínica desses meios expressivos.
Dos repertórios tematizados, alguns transitam pelos universos da moda, da arquitetura, do cinema, da literatura, da botânica e da biologia. Ainda, foram compartilhados muitos e preciosos documentos de viagens, leituras e filmes, que resultaram numa ampliação da visualidade e, também, transportaram-se do imaginário dos artistas para anotações e diários.
DESENHOS: DO ZÊNITE
A linguagem do desenho é um registro de impulsos, de linha dócil e abrupta, revela segredos, soma cores sedutoras no papel, do carmim aos dourados. Num movimento, o olhar acompanha o cinetismo de emaranhados até experimentar a vertigem da profusão ornamental. Como riachos de centenas de fontes e afluentes, uma memória ressonante, apropriada nos desenhos, reverbera nos traçados, de pontos e linhas que se movem rápidos, tais como flechas suaves. São os vetores da subjetividade que cortam o espaço, para serem revelados numa instabilidade visual pela inscrição da velocidade, mas é a lentidão que incorpora a imagem-tempo1 ao lugar.
O desenho molhado com pincel, nanquim e cores misturados, mais mapas de pedras e de estampas, mostra-se como as bordas do rio que ficam marcadas pelos fluxos d’água. Os gestos formam juntos um entremeado de linhas, riscos de contínuo estalar e crepitar; resumem-se numa fogueira acesa, quando o carvão em brasa é a origem do desenho. Nos temas gráficos, exploram-se as reverberações exaustivas, criam-se as cadências dos tempos e dos movimentos; quando combinadas, linha e cor traduzem intensidades de sentidos.
As coleções tratam de uma visualidade exuberante, da ornamentação de palácios aos carimbos têxteis da Índia e de outras paragens. E, se reunidas num patchwork de dobras, configuram uma potência de espaço liso, em todas as direções.
Dos encontros que ocorrem no centro da floresta de símbolos, entre os temas desenhados surgem animais mortos, cristais e flores trazidos pelas intempéries, mas a ação de traçar as linhas de fuga depende de cada um e de seu trabalho em terreno2, um trabalho de procedimentos criativos distribuídos entre desenhos, livros de artista, colagens, objetos e fotografias. Da criação e configuração dos vários modos de registros e suas camadas, surgiram as possibilidades para pensar num movimento intenso e intemporal, singularizado num stop motion de multiplicidades.
É uma proposta de desenho, dos desdobramentos e das imagens temporalizadas3, que revelam partes de um processo de arte ativo e coletivo de artistas. Como capturar um processo de criação embebido em tal ecologia?
TEMPOS: DO CORPO
Esta apresentação discute uma ação de criação em rede, na alteridade dos corpos e das trocas intensas, no lugar ou no não lugar. O termo zênite4 foi uma das escolhas encontradas no coletivo; refere-se a uma condição de orientação a partir da vertical e das constelações, sugerindo um mapa celeste. Entre os aspectos da criação, destaca-se o caminhar no limite da dor e da solidão, ao se tratar de um espaço sensível, e de expor a mais invisível das semióticas, dos desenhos e das pinturas, dos objetos ritualísticos e das máscaras.
Outros sentimentos se configuram, como o amor, o afeto e o pesar da separação e, depois, tantas ânsias que tornam o luto inconsolável. Chega-se num mato, torcido pelo morro, enquanto para baixo a água corre. No lugar, a retomada da experiência se transforma num corpo coletivo distribuído entre a floresta e o riacho, a capivara e o pássaro, a mulher e a pedra. É percorrer uma trilha à procura de sementes dispersadas pela enxurrada ou prontas para germinar a próxima planta; entre a vegetação, recolher galhos, folhas e flores derrubados, distribuídos pelo vento e soterrados nos jazigos de terra enquanto, a cada dia, os mapas sobrepostos constituem finas estampas com pedras e reinos.
As relações de poder5 se expressam pelas mortes dos animais, um enterro e outro desterro, misturam-se ossos e partes apodrecidas dos corpos. A morte animal por acidente, voo cego e inconsciência. A morte da capivara por envenenamento e a morte de uma saíra-sete-cores pela pancada, um corte abrupto e um acidente, chega-se à não consciência do corpo e do animal.
Estados limites, políticas do corpo e biopolítica6 podem ou não restabelecer uma atitude criadora; ações que se desenvolvem entre devires animais, minerais e vegetais denotam uma iniciação. Não por acaso, identifica-se um mito, caçador e feminino, que se revela e tem seu significado distribuído entre infernos, do céu e da terra, da união e dos desapegos. A reunião dos lugares e dos sentidos, do corpo às partes animais, dos desenhos e da luz, dos reflexos aos cristais, cineticamente dispostos numa distribuição concêntrica e em espiral, potencializam um coletivo, do corpo e do outro, do interior e de fora. Um corpo é formado pelos outros corpos, somatória de pedaços, parte da cabeça animal, de asas e penas de pássaros, de mato e de pedras e quartzo.
No vestido, foram se incorporando as vidas animais, vegetais, minerais e tantas simbologias. Na floresta, forma-se uma cobertura vegetal de insônia; são os desenhos na arma-roupa e na coroa, de animais mortos, de carcaças e penas, de flores e pedras-cartas para lutar e permanecer nas bordas do riacho. Asa e pulmão, tensão de um eterno afogar-se em lágrimas. Algumas das imagens detalhadas da natureza e do corpo exploram a dor e as armadilhas, aparecem migalhas de amor.
Sapatos de madeira com plataforma e uma máscara de cabeça de capivara, com buracos negros no lugar dos olhos, servem para se lembrar de um poder disciplinar que ronda a rede de um feminino tão arcaico, silencioso e, quando às escuras, caminha-se nas pontas dos pés, para dançar ou fugir. Uma biopolítica de poder se apresenta pelas tramas, destroços da vida e da natureza, das vontades que servem para contrariar ou subservir.
A capivara, com quatro dedos nas patas dianteiras e três dedos nas patas traseiras, sobrevive entre a água e a terra, um corpo híbrido de roedor e anfíbio que mantém hábitos noturnos e esquivos. Os objetos, os materiais, os animais, as questões e os mitos que integram o trabalho foram extraídos do próprio lugar em que se instala a obra e, muitas vezes, compõem o mesmo território.
Por outro lado, os universos escolhidos são não apenas distantes da arte, mas são aqueles em que o vetor perverso do modo de dominação e produção atinge seus extremos distribuídos em um arco de temporalização, tratando-se de símbolos que cobrem palácios ou servem de incrustações para carimbos têxteis fabricados na Índia, de modelos de túnicas e trajes que remontam à Idade Média, de sapatos medievais de cortesãs e gueixas no Japão, de adornos florais, até peles e carcaças de animais para criar máscaras primitivas.
Pensar em termos de linhas móveis, desemaranhar as linhas dos voos dos pássaros e das trilhas dos animais, para lançar as linhas das flechas, perigosas e mortais é, em cada caso, no percurso nômade ou de mito, traçar um mapa, cartografar terras desconhecidas e realizar um trabalho em terreno. Nada exato, mas formando uma multiplicidade, lembra um bando de capivaras, um enxame ou revoada. Um grupo e um encadeamento quebradiço, de afetos e de velocidades variáveis. As superfícies imitam as matérias, o plano do vidro imita o ar e cria uma barreira para o voo do pássaro e, a cada nova tecnologia, cria-se um tipo de acidente. Rios represados deixam áreas inundadas e armadilhas para animais que correm contra as ciladas.
Criados nos sonhos, em devaneios, nos estados alterados e nas brincadeiras, surgem os textos da cultura. A mulher e a máscara da capivara se desterritorializam de sapatos com plataforma, dançam imobilizadas, compõem um mapa com a gueixa e estremecem o poder local.
O animal de patas em plataforma se territorializa sobre a terra e avança para a água. Não havendo mais capivaras, as mulheres terão que procurar outras máscaras. Não havendo mais mitos ou divindades, o que as mulheres deverão procurar?
ZENITE
PROLOGUE
It is necessary to randomly note some elements that were present in the development of the Zenith project. Firstly, the artists’ meeting in a collective experiment, resulting in the divestment and undoing of individuality and authorship, in a complex chaos of creative challenge, in which they proposed to establish and share a network of exchanges and contamination.
Why choose a path in the woods and a stream? How to produce singular subjectivity along the motorways? Individuals, animals and habitat were mingled along the paths and then other experiences were broadened. The choice of languages, such as drawing and photography, highlighted the indices of the enlightened and mechanical origin of these effective means.
As for the repertoire of themes, some moved along the universes of fashion, architecture, cinema, literature, botany and biology. Moreover, many precious travel documents, readings and films were shared, which resulted in the broadening of visualization, and they were also transported from the artists’ imagery to notes and diaries.
DRAWING: ZENITH
The language of drawing is a record of impulses of docile and abrupt lines, revealing secrets, adding seducing colours to the paper, from crimson to golden colours. In a movement, the eyes follow the kinesis of entanglement until they experience the vertigo caused by ornamental profusion. Like streams flowing from hundreds of sources and tributaries, a resonant memory, suitable to the drawings, reverberates across the lines and dots that move as quickly as soft arrows. They are the vectors of subjectivity which pierce the space to be revealed in a visual instability through speed, but it is the slowness that incorporates a time-image1 to the place.
The brushstroke, the Indian ink and colours, as well as the maps made of stones and coloured patterns, make the drawing look like the river banks marked by flowing water. The gestures together form entangled lines, sketches of continuous cracks and crackling – reduced to a bonfire, where the burning coal is the origin of the drawing.
As for the graphic themes, exhaustive reverberations are explored, cadences of time and movement are created; when lines and colours are combined, they translate intensities of senses.
The collections depict an exuberant view, from the décor of palaces to textile stamps from India and elsewhere. Moreover, when put together in a patchwork of folds, they make up a potential plain space in all directions.
From the meetings in the middle of a forest of symbols, dead animals, crystals and flowers carried by storms emerge as themes to be drawn, but the act of drawing vanishing lines depends on each person and their work on the ground2, the work on creative procedures displayed among drawings, artists’ books, collages, objects and photographs. The creation and configuration of several types of register and layers have created possibilities for thinking about an intense and timeless movement, transformed into a stop-motion of multiplicities.
It is a drawing proposal, its development and temporalized images3 that reveal parts of a process of an active and collective process of art. How to capture a process of creating embedded in such ecology?
TIMES: THE BODY
This presentation discusses a network creating action in the otherness of bodies and intense exchanges, in the place or the non-place. The term zenith4 was one of the choices found in the collective, and refers to a condition of guidance based on the vertical and the constellations, suggesting a celestial map. Keeping within the limits of pain and loneliness is one of the aspects of creation, when it comes to a sensitive space and to exhibit the most invisible semiotics, drawings and paintings of the ritual objects and masks.
Other feelings are depicted, such as love, affection and sorrow over separation, and then so many anxieties that make grief inconsolable. We reach the woods twisted by the hill, while the water runs down. In that place, the resumption of experience becomes a collective body, spread over the forest and the stream, the capybara and the bird, the woman and the stone. We walk a trail, in search of seeds that have been dispersed by the storm or ready to germinate and develop the next plant. In the vegetation, gathering branches, leaves and flowers, blown off by the wind and buried in graveyards, while day after day, the juxtaposed maps make fine patterns with stones and realms.
The relationships of power5 are expressed by the death of animals, a burial and another exile, bones and putrid parts of bodies are mixed. It is the accidental animal death, blind flying and unconsciousness. By the poisoning death of the capybara and a saíra-sete-cores clubbed to death, an abrupt cut and an accident, we reach the non-consciousness of the body and of the animal.
Border states, corporeal politics and biopolitics6 may or may not re-establish a creating attitude; actions that develop among animal, mineral and plant transformations denote initiation. Not by chance, we identify a hunting and feminine myth, which is revealed and has its meaning spread over hells, in Heaven and earth, of union and detachment.
The combination of places with senses, the body with animal parts, drawings with light, from reflections to crystals, kinetically arranged in a concentric and spiral distribution, boosts a collective of the body and the other, the inside and the outside. A body is made from other bodies, a total sum of pieces, parts of animal heads, bird wings and feathers, woods, stones and quartz.
Animal, plant and mineral lives of so much symbolism have been incorporated to the dress. In the forest, a foliage cover of insomnia is formed; dead animals, carcasses and feathers, flowers and stone-letters drawn on the armour and the crown, to fight and remain on the stream banks. Wings and lungs are the tension of eternal drowning in tears. Some of the detailed images of nature and the body exploring pitfalls and pain, appear as nought but crumbs of love.
Wooden platform shoes and a capybara head mask with black holes for the eyes are reminders of the disciplinary power that surrounds the network of such an archaic and quiet feminine element and, when in the dark, we tiptoe to dance or flee. The biopolitics of power is presented by the plots, the wreckage of life and nature and the wishes used for contradiction or submission.
The capybara, with four toes on the front feet and three toes on the back, is semi-aquatic, a rodent-amphibian hybrid with nocturnal, elusive habits. The objects, materials, animals, issues and myths that comprise the work have been taken from the same place where the work of art is installed, and many times, they compose the same territory.
On the other hand, the chosen universes are not only distant from art, they are those in which the wicked vector of domination and production reaches its highest points distributed throughout an arch of temporalization. They are symbols that cover palaces or are inlaid in textile patterns made in India, tunics and clothes that refer to the Middle Ages, medieval courtesans’ and Japanese geisha shoes, flower ornaments and even animal skins and carcasses to make primitive masks. Thinking in terms of mobile lines, untangling the lines of flights of birds and animal tracks to draw the lines for shooting dangerous and lethal arrows means, in each case, charting unknown lands in a nomadic or mythic trajectory and working on the ground. Nothing is exact, but forming a multiplicity recalls a pack of capybaras, a swarm or a flock. It is a group and a fragile series of affection and variable speed.
The surfaces mimic the matters, the glass plane mimics the air and hinders the bird‘s flight, and for every new technology a kind of accident is created. Dammed rivers leave flooded areas and traps for the animals that run against ambushes.
Created in dreams, in daydreams, in altered states of mind and in games, the culture texts emerge. The woman and the capybara deterritorialize in their platform shoes, dance immobilised, compose a map with the geisha and shake the local power.
The animal with platform feet territorialize on land and moves towards the water. Having no more capybaras, the women will have to search for other masks. Having no more myths or deities, what should women search for?
DENISE BANDEIRA
Artist and researcher. PhD in Communication and Semiotics from PUC-SP. Professor of FAP/UNESPAR´s Visual Arts program. Member of the Art and Technology Group.
Por que escolher um percurso no mato e um riacho? Como produzir subjetividades singulares à margem das autoestradas? Indivíduo, animal e habitat foram se misturando pelos trajetos e, então, outras experiências se potencializaram. A escolha de linguagens, como desenho e fotografia, ressaltou os índices da origem luminosa e maquínica desses meios expressivos.
Dos repertórios tematizados, alguns transitam pelos universos da moda, da arquitetura, do cinema, da literatura, da botânica e da biologia. Ainda, foram compartilhados muitos e preciosos documentos de viagens, leituras e filmes, que resultaram numa ampliação da visualidade e, também, transportaram-se do imaginário dos artistas para anotações e diários.
DESENHOS: DO ZÊNITE
A linguagem do desenho é um registro de impulsos, de linha dócil e abrupta, revela segredos, soma cores sedutoras no papel, do carmim aos dourados. Num movimento, o olhar acompanha o cinetismo de emaranhados até experimentar a vertigem da profusão ornamental. Como riachos de centenas de fontes e afluentes, uma memória ressonante, apropriada nos desenhos, reverbera nos traçados, de pontos e linhas que se movem rápidos, tais como flechas suaves. São os vetores da subjetividade que cortam o espaço, para serem revelados numa instabilidade visual pela inscrição da velocidade, mas é a lentidão que incorpora a imagem-tempo1 ao lugar.
O desenho molhado com pincel, nanquim e cores misturados, mais mapas de pedras e de estampas, mostra-se como as bordas do rio que ficam marcadas pelos fluxos d’água. Os gestos formam juntos um entremeado de linhas, riscos de contínuo estalar e crepitar; resumem-se numa fogueira acesa, quando o carvão em brasa é a origem do desenho. Nos temas gráficos, exploram-se as reverberações exaustivas, criam-se as cadências dos tempos e dos movimentos; quando combinadas, linha e cor traduzem intensidades de sentidos.
As coleções tratam de uma visualidade exuberante, da ornamentação de palácios aos carimbos têxteis da Índia e de outras paragens. E, se reunidas num patchwork de dobras, configuram uma potência de espaço liso, em todas as direções.
Dos encontros que ocorrem no centro da floresta de símbolos, entre os temas desenhados surgem animais mortos, cristais e flores trazidos pelas intempéries, mas a ação de traçar as linhas de fuga depende de cada um e de seu trabalho em terreno2, um trabalho de procedimentos criativos distribuídos entre desenhos, livros de artista, colagens, objetos e fotografias. Da criação e configuração dos vários modos de registros e suas camadas, surgiram as possibilidades para pensar num movimento intenso e intemporal, singularizado num stop motion de multiplicidades.
É uma proposta de desenho, dos desdobramentos e das imagens temporalizadas3, que revelam partes de um processo de arte ativo e coletivo de artistas. Como capturar um processo de criação embebido em tal ecologia?
TEMPOS: DO CORPO
Esta apresentação discute uma ação de criação em rede, na alteridade dos corpos e das trocas intensas, no lugar ou no não lugar. O termo zênite4 foi uma das escolhas encontradas no coletivo; refere-se a uma condição de orientação a partir da vertical e das constelações, sugerindo um mapa celeste. Entre os aspectos da criação, destaca-se o caminhar no limite da dor e da solidão, ao se tratar de um espaço sensível, e de expor a mais invisível das semióticas, dos desenhos e das pinturas, dos objetos ritualísticos e das máscaras.
Outros sentimentos se configuram, como o amor, o afeto e o pesar da separação e, depois, tantas ânsias que tornam o luto inconsolável. Chega-se num mato, torcido pelo morro, enquanto para baixo a água corre. No lugar, a retomada da experiência se transforma num corpo coletivo distribuído entre a floresta e o riacho, a capivara e o pássaro, a mulher e a pedra. É percorrer uma trilha à procura de sementes dispersadas pela enxurrada ou prontas para germinar a próxima planta; entre a vegetação, recolher galhos, folhas e flores derrubados, distribuídos pelo vento e soterrados nos jazigos de terra enquanto, a cada dia, os mapas sobrepostos constituem finas estampas com pedras e reinos.
As relações de poder5 se expressam pelas mortes dos animais, um enterro e outro desterro, misturam-se ossos e partes apodrecidas dos corpos. A morte animal por acidente, voo cego e inconsciência. A morte da capivara por envenenamento e a morte de uma saíra-sete-cores pela pancada, um corte abrupto e um acidente, chega-se à não consciência do corpo e do animal.
Estados limites, políticas do corpo e biopolítica6 podem ou não restabelecer uma atitude criadora; ações que se desenvolvem entre devires animais, minerais e vegetais denotam uma iniciação. Não por acaso, identifica-se um mito, caçador e feminino, que se revela e tem seu significado distribuído entre infernos, do céu e da terra, da união e dos desapegos. A reunião dos lugares e dos sentidos, do corpo às partes animais, dos desenhos e da luz, dos reflexos aos cristais, cineticamente dispostos numa distribuição concêntrica e em espiral, potencializam um coletivo, do corpo e do outro, do interior e de fora. Um corpo é formado pelos outros corpos, somatória de pedaços, parte da cabeça animal, de asas e penas de pássaros, de mato e de pedras e quartzo.
No vestido, foram se incorporando as vidas animais, vegetais, minerais e tantas simbologias. Na floresta, forma-se uma cobertura vegetal de insônia; são os desenhos na arma-roupa e na coroa, de animais mortos, de carcaças e penas, de flores e pedras-cartas para lutar e permanecer nas bordas do riacho. Asa e pulmão, tensão de um eterno afogar-se em lágrimas. Algumas das imagens detalhadas da natureza e do corpo exploram a dor e as armadilhas, aparecem migalhas de amor.
Sapatos de madeira com plataforma e uma máscara de cabeça de capivara, com buracos negros no lugar dos olhos, servem para se lembrar de um poder disciplinar que ronda a rede de um feminino tão arcaico, silencioso e, quando às escuras, caminha-se nas pontas dos pés, para dançar ou fugir. Uma biopolítica de poder se apresenta pelas tramas, destroços da vida e da natureza, das vontades que servem para contrariar ou subservir.
A capivara, com quatro dedos nas patas dianteiras e três dedos nas patas traseiras, sobrevive entre a água e a terra, um corpo híbrido de roedor e anfíbio que mantém hábitos noturnos e esquivos. Os objetos, os materiais, os animais, as questões e os mitos que integram o trabalho foram extraídos do próprio lugar em que se instala a obra e, muitas vezes, compõem o mesmo território.
Por outro lado, os universos escolhidos são não apenas distantes da arte, mas são aqueles em que o vetor perverso do modo de dominação e produção atinge seus extremos distribuídos em um arco de temporalização, tratando-se de símbolos que cobrem palácios ou servem de incrustações para carimbos têxteis fabricados na Índia, de modelos de túnicas e trajes que remontam à Idade Média, de sapatos medievais de cortesãs e gueixas no Japão, de adornos florais, até peles e carcaças de animais para criar máscaras primitivas.
Pensar em termos de linhas móveis, desemaranhar as linhas dos voos dos pássaros e das trilhas dos animais, para lançar as linhas das flechas, perigosas e mortais é, em cada caso, no percurso nômade ou de mito, traçar um mapa, cartografar terras desconhecidas e realizar um trabalho em terreno. Nada exato, mas formando uma multiplicidade, lembra um bando de capivaras, um enxame ou revoada. Um grupo e um encadeamento quebradiço, de afetos e de velocidades variáveis. As superfícies imitam as matérias, o plano do vidro imita o ar e cria uma barreira para o voo do pássaro e, a cada nova tecnologia, cria-se um tipo de acidente. Rios represados deixam áreas inundadas e armadilhas para animais que correm contra as ciladas.
Criados nos sonhos, em devaneios, nos estados alterados e nas brincadeiras, surgem os textos da cultura. A mulher e a máscara da capivara se desterritorializam de sapatos com plataforma, dançam imobilizadas, compõem um mapa com a gueixa e estremecem o poder local.
O animal de patas em plataforma se territorializa sobre a terra e avança para a água. Não havendo mais capivaras, as mulheres terão que procurar outras máscaras. Não havendo mais mitos ou divindades, o que as mulheres deverão procurar?
ZENITE
PROLOGUE
It is necessary to randomly note some elements that were present in the development of the Zenith project. Firstly, the artists’ meeting in a collective experiment, resulting in the divestment and undoing of individuality and authorship, in a complex chaos of creative challenge, in which they proposed to establish and share a network of exchanges and contamination.
Why choose a path in the woods and a stream? How to produce singular subjectivity along the motorways? Individuals, animals and habitat were mingled along the paths and then other experiences were broadened. The choice of languages, such as drawing and photography, highlighted the indices of the enlightened and mechanical origin of these effective means.
As for the repertoire of themes, some moved along the universes of fashion, architecture, cinema, literature, botany and biology. Moreover, many precious travel documents, readings and films were shared, which resulted in the broadening of visualization, and they were also transported from the artists’ imagery to notes and diaries.
DRAWING: ZENITH
The language of drawing is a record of impulses of docile and abrupt lines, revealing secrets, adding seducing colours to the paper, from crimson to golden colours. In a movement, the eyes follow the kinesis of entanglement until they experience the vertigo caused by ornamental profusion. Like streams flowing from hundreds of sources and tributaries, a resonant memory, suitable to the drawings, reverberates across the lines and dots that move as quickly as soft arrows. They are the vectors of subjectivity which pierce the space to be revealed in a visual instability through speed, but it is the slowness that incorporates a time-image1 to the place.
The brushstroke, the Indian ink and colours, as well as the maps made of stones and coloured patterns, make the drawing look like the river banks marked by flowing water. The gestures together form entangled lines, sketches of continuous cracks and crackling – reduced to a bonfire, where the burning coal is the origin of the drawing.
As for the graphic themes, exhaustive reverberations are explored, cadences of time and movement are created; when lines and colours are combined, they translate intensities of senses.
The collections depict an exuberant view, from the décor of palaces to textile stamps from India and elsewhere. Moreover, when put together in a patchwork of folds, they make up a potential plain space in all directions.
From the meetings in the middle of a forest of symbols, dead animals, crystals and flowers carried by storms emerge as themes to be drawn, but the act of drawing vanishing lines depends on each person and their work on the ground2, the work on creative procedures displayed among drawings, artists’ books, collages, objects and photographs. The creation and configuration of several types of register and layers have created possibilities for thinking about an intense and timeless movement, transformed into a stop-motion of multiplicities.
It is a drawing proposal, its development and temporalized images3 that reveal parts of a process of an active and collective process of art. How to capture a process of creating embedded in such ecology?
TIMES: THE BODY
This presentation discusses a network creating action in the otherness of bodies and intense exchanges, in the place or the non-place. The term zenith4 was one of the choices found in the collective, and refers to a condition of guidance based on the vertical and the constellations, suggesting a celestial map. Keeping within the limits of pain and loneliness is one of the aspects of creation, when it comes to a sensitive space and to exhibit the most invisible semiotics, drawings and paintings of the ritual objects and masks.
Other feelings are depicted, such as love, affection and sorrow over separation, and then so many anxieties that make grief inconsolable. We reach the woods twisted by the hill, while the water runs down. In that place, the resumption of experience becomes a collective body, spread over the forest and the stream, the capybara and the bird, the woman and the stone. We walk a trail, in search of seeds that have been dispersed by the storm or ready to germinate and develop the next plant. In the vegetation, gathering branches, leaves and flowers, blown off by the wind and buried in graveyards, while day after day, the juxtaposed maps make fine patterns with stones and realms.
The relationships of power5 are expressed by the death of animals, a burial and another exile, bones and putrid parts of bodies are mixed. It is the accidental animal death, blind flying and unconsciousness. By the poisoning death of the capybara and a saíra-sete-cores clubbed to death, an abrupt cut and an accident, we reach the non-consciousness of the body and of the animal.
Border states, corporeal politics and biopolitics6 may or may not re-establish a creating attitude; actions that develop among animal, mineral and plant transformations denote initiation. Not by chance, we identify a hunting and feminine myth, which is revealed and has its meaning spread over hells, in Heaven and earth, of union and detachment.
The combination of places with senses, the body with animal parts, drawings with light, from reflections to crystals, kinetically arranged in a concentric and spiral distribution, boosts a collective of the body and the other, the inside and the outside. A body is made from other bodies, a total sum of pieces, parts of animal heads, bird wings and feathers, woods, stones and quartz.
Animal, plant and mineral lives of so much symbolism have been incorporated to the dress. In the forest, a foliage cover of insomnia is formed; dead animals, carcasses and feathers, flowers and stone-letters drawn on the armour and the crown, to fight and remain on the stream banks. Wings and lungs are the tension of eternal drowning in tears. Some of the detailed images of nature and the body exploring pitfalls and pain, appear as nought but crumbs of love.
Wooden platform shoes and a capybara head mask with black holes for the eyes are reminders of the disciplinary power that surrounds the network of such an archaic and quiet feminine element and, when in the dark, we tiptoe to dance or flee. The biopolitics of power is presented by the plots, the wreckage of life and nature and the wishes used for contradiction or submission.
The capybara, with four toes on the front feet and three toes on the back, is semi-aquatic, a rodent-amphibian hybrid with nocturnal, elusive habits. The objects, materials, animals, issues and myths that comprise the work have been taken from the same place where the work of art is installed, and many times, they compose the same territory.
On the other hand, the chosen universes are not only distant from art, they are those in which the wicked vector of domination and production reaches its highest points distributed throughout an arch of temporalization. They are symbols that cover palaces or are inlaid in textile patterns made in India, tunics and clothes that refer to the Middle Ages, medieval courtesans’ and Japanese geisha shoes, flower ornaments and even animal skins and carcasses to make primitive masks.
Thinking in terms of mobile lines, untangling the lines of flights of birds and animal tracks to draw the lines for shooting dangerous and lethal arrows means, in each case, charting unknown lands in a nomadic or mythic trajectory and working on the ground. Nothing is exact, but forming a multiplicity recalls a pack of capybaras, a swarm or a flock. It is a group and a fragile series of affection and variable speed.
The surfaces mimic the matters, the glass plane mimics the air and hinders the bird‘s flight, and for every new technology a kind of accident is created. Dammed rivers leave flooded areas and traps for the animals that run against ambushes.
Created in dreams, in daydreams, in altered states of mind and in games, the culture texts emerge. The woman and the capybara deterritorialize in their platform shoes, dance immobilised, compose a map with the geisha and shake the local power.
The animal with platform feet territorialize on land and moves towards the water. Having no more capybaras, the women will have to search for other masks. Having no more myths or deities, what should women search for?
DENISE BANDEIRA
Artist and researcher. PhD in Communication and Semiotics from PUC-SP. Professor of FAP/UNESPAR´s Visual Arts program. Member of the Art and Technology Group.
ENTRE LUGARES ENTRE CORPOS Como o Deus de Kierkgaard, a obra de arte nos perturba com a sua agressiva absurdidade, da maneira como Jasper Johns apresentou- -se diante de mim há vários anos. Ela exige de nós uma decisão em que descobrimos algo de nossas próprias qualidades [...].
Leo Steinberg – A arte contemporânea e a situação de seu público .
O corpo é o espaço mínimo: é nele e a partir dele que se dão os encontros possíveis na busca da execução e formas de ação. Propiciando combinações múltiplas comuns, o corpo realiza o indivíduo – esse coletivo de experiências.
Ericson Pires – 12 proposições: resistência, corpo, ação – estratégias e forças na produção plástica atual .
A ação iniciava-se quando um ônibus apanhava um grupo de pessoas na praça central e dali percorria uma longa distância até chegar a uma área de preservação dos mananciais de Curitiba, localizada no município de Campo Largo. Chegando lá, nas margens da cidade, aquele grupo seria recebido numa casa de madeira, algo rústica, com fotos pelas paredes e depois conduzidos por meio de uma trilha a um grande lago.
No caminho para o lago, ouvia-se, entre os sons de pássaros e galhos, uma música que soava de pequenas caixas acústicas espalhadas. Ao se chegar ao lago, viam-se grandes panos amarelos que desciam de uma árvore e se perdiam água adentro. Uma performer em movimentos lentos descia da árvore, a mesma da qual desciam os panos amarelos, e deslizava pela água em direção a um platô invisível aos olhos de todos.
No platô, a performer, com movimentos estudados, estabelecia um olhar que compreendia, conectava e interligava os quatro pontos cardeais, o lago, suas margens, a diversidade biológica do local, os espectadores e aquele espaço próximo e ao mesmo tempo tão distante do burburinho da urbe. Ao fim da performance todos se dirigiam para a casa de madeira onde café, chás e comidas os esperavam. Após uma breve conversa com as artistas, o grupo era reconduzido para a praça central. A ação em questão era a proposição artística Lago Amarelo (2006), de autoria de Laura Miranda e Mônica Infante. A experiência produzida junto aos espectadores em Lago Amarelo nada pedira além de sentidos e olhos muito abertos e, segundo relatos, fora intensa e ao mesmo tempo delicada.
Como estabelecer um entendimento da vivência artística proporcionada por Lago Amarelo? O que pode haver de comum entre essa experiência e outras tantas que temos em exposições diversas em museus, centros culturais e galerias de arte e, também, o que as diferencia? A contemporaneidade nos coloca frente a algumas proposições artísticas perante as quais nos sentimos desafiados. O olhar para novas experiências artísticas, seguindo os passos do crítico e historiador Leo Steinberg, talvez se inicie sempre pelo estranhamento. E a partir desse primeiro embate, decidiremos nossos próprios caminhos e poderemos, como assevera o crítico, tomar uma postura com relação à proposição artística defrontada de descobrir algo de nossas próprias qualidades na experiência vista e vivida. Arrisquemos, pois.
As artes visuais pedem renovadas formas de entendimento e, se isso já vale para o defrontar-se com obras de arte de diferentes épocas, inseridas em narrativas diversas da história da arte, torna-se mais urgente a partir de meados do século passado. A produção das artes visuais transformou-se sensivelmente nos últimos 60 anos pelas questões estruturais da obra de arte, ou melhor, da proposição artística, pertinentes à temporalidade, ao caráter processual, à diluição da autoria, à interação e participação, à afirmação de narrativas, aos lugares discursivos, à relação entre a arte e dinâmicas educacionais, à convergência entre a arte e o mundo da cultura. E também, mais historicamente, pelas questões colocadas pelas vertentes conceituais oriundas dos anos 60 e presentes até a contemporaneidade.
Algumas práticas e textos de artistas marcaram posições determinantes no reposicionamento do entendimento das artes visuais no cenário brasileiro dos anos 60 e 70. Juntos, eles estabeleceram uma compreensão que nos anos seguintes fundamentou teórica e poeticamente a produção contemporânea. Ao se designarem muitas vezes de não artistas ou propositores, os artistas repensaram seu fazer poético e seu papel na partilha do sensível, para usar a expressão de Jacques Rancière, numa renovada negociação de sentidos junto aos espectadores, ao contexto sociocultural e político e às narrativas, hegemônicas ou não, da história da arte. Situações, derivas, circuitos ideológicos, espaços imantados, estenderam a exploração da obra em direção a vetores espaço-temporais complexos. Uma reflexão sobre a discursividade há muito deixou de lado qualquer defesa de essencialidade na arte. À presentidade da obra de arte que subjaz num tempo-espaço próprio, contínuo e independente do mundo, segundo Michael Fried em seu texto Arte e objetidade, prevemos a revolução copernicana nos anos 60 da concreção da obra de arte e com ela a crítica ao olhar domesticado, quase uma renovada aposta no olhar selvagem proposto pelos surrealistas. Assim, no ato de confronto da proposição artística junto ao espectador, retomando a discussão de Steinberg, vai-se revelando uma aposta ética, de fruição e inteligibilidade, que deve garantir um espaço de liberdade simbólica e estética, nos seus tantos exercícios experimentais, aqui lembrando Mário Pedrosa.
No início dos anos 80, em Curitiba, muitos artistas sintonizados com as mudanças político-sociais no Brasil e com a diversidade da produção artística nacional, não restrita à chamada “volta da pintura”, apostaram muitas vezes na experimentação e em agenciamentos diversos dos modos de se fazer, produzir, expor, pensar e refletir sobre a arte. A formação de grupos de artistas foi uma estratégia muito presente, como o Sensibilizar, PH4 ou Sucateando. As performances tiveram uma presença determinante, pois o corpo, que ganhara as ruas nos muitos comícios político-públicos que se espalhavam pelo país, era ressignificado na arte. Muito importante também na cidade foram as exposições organizadas por artistas, performances institucionais perfazendo tramas produtivas entre as malhas dos museus e as poéticas coletivas, como os eventos Moto Contínuo, Bicicleta, Para-raios e Olho, entre outros. E por último, um dado muito significativo foi o acionamento do espaço público, visto como esfera pública, notadamente os do grupo Sensibilizar e os do evento Moto Contínuo. Nesse campo, aberto e denso em experimentações, com performances, experiências na rua ou estabelecimento de outras relações com o circuito de arte, a artista Laura Miranda iniciou sua trajetória artística e teve, nesses modos de agenciamentos, algumas de suas bases conceituais.
Em meados dos anos 80, Laura Miranda desenvolveu projetos em conjunto com as artistas Denise Bandeira e Eliane Prolik. A partir de pesquisas teóricas sobre o entendimento da pintura e do corpo como conceito e dado significante, as três artistas realizaram Impressões Digitais (1985), elaborado através de pintura coletiva em grandes extensões de papel kraft, recortes de jornal e relevos metálicos. Ainda nesse período, a performance Fio (1987) também realizada pelas artistas, retomaria os estudos sobre corporalidade e espaço. Desde o princípio, Laura Miranda trabalhou de forma colaborativa com outros artistas. Certamente, não no sentido de apagamento da individualidade, as redes colaborativas configuravam-se como um espaço intersubjetivo de discussão e negociação permanente. O trabalho conjunto das artistas talvez já indicasse um posicionamento problematizador ao sujeito narcísico proposto por parte de certa crítica e do mercado para a arte dos anos 80. Nos anos 90, os projetos colaborativos afirmavam seu caráter de extensão relacional e, assim, foram importantes na trajetória de Laura Miranda os projetos Corpo Impresso (1998), Fonte (1998-1999) e Serpente (2000).
O corpo, que tantas vezes constituiu poéticas mais experimentais na arte brasileira, haja vista as primeiras experiências fundantes do neoconcretismo, dito como o motor da obra para Frederico Morais (1970) , é um elemento sempre presente nas pesquisas de Laura . Na performance Fio, acionava-se um corpo fenomenológico que se movimentava, contraía-se, expandia-se e, com seus gestos, dimensionava o espaço. Estabelecia-se uma relação permanente entre o espaço e o corpo, transformado em propositor de ações de ocupação, mensuração e trama significativa entre as artistas. A partir do começo dos anos 90, o corpo fenomênico ganharia entendimentos e significados mais amplos que o recobririam com dimensões históricas, sociais, simbólicas, ficcionais, de gênero ou classe, e inauguraria novos gestos.
A conceitualização do espaço e lugar, a partir dos anos 90, nas propostas de Laura Miranda, também não mais se restringia a questões de sua existência concreta e determinantes físicas. Vetores espaciais de sua existência geográfica, simbólica, cultural e social seriam trazidos para o primeiro plano dos projetos artísticos. Novas abordagens de espaço, trazidas pelos conceitos de “lugares discursivos”, de Miwon Kwon, ou “lugares funcionais”, de James Meyer, informariam, entre outras abordagens, uma nova aproximação aos lugares propositivos de ação. Esses autores realizaram em seus ensaios uma panorâmica das transformações da percepção do espaço, desde o espaço perceptivo fenomênico até o espaço, não necessariamente físico, transversalmente cortado por diferentes discursos institucionais, geográficos, culturais, políticos ou sociais.
No texto Estética relacional, de Nicolas Bourriaud, construído de forma panorâmica em seu sobrevoo entre conceitos operacionais para a arte dos anos 90, manifesta-se um tom de necessária urgência em sua afirmação de outro estado da arte. Ao abordar a obra de arte, mais acertadamente a proposição artística, como interstício social, o autor abre sua perspectiva de reflexão artística à malha da vida social. E o que interessa nessa análise de alguns projetos de Laura Miranda é o de se pensar na constituição dessa fronteira relacional, arte e sociedade, como esforço poético construído no embate entre sujeito e mundo, corpo e lugar. Da fricção entre corpo e lugar, nessa comissura , constroem-se as pesquisas posteriores da artista, dadas em experiências colaborativas junto a artistas diversos e em redes relacionais de produção e vivência. Alguns de seus projetos mais recentes são Spirare (2003-2004), realizado em colaboração com Denise Bandeira, Stelaro (2007), com Mariana Frochtengarten, Lago Amarelo (2006), com Mônica Infante e Zênite (2010), em colaboração com nove artistas.
A palavra spirare, que dá nome ao projeto, tem sua significação ligada a fôlego, respirar, sopro, suspirar, entre outros e assim nos remete a algumas pistas da proposição ao encarnar os sentidos de ação, descoberta e trajetos. A operação poética consistia inicialmente em aproximar dois lugares geográficos, culturais e vivenciais. Partindo de uma etnografia sensível , ou de uma vontade cartográfica , foi realizado um grande levantamento. De um lado, o Japão arcaico e moderno foi configurado através de variadas leituras e de uma viagem iniciática das duas artistas. E de outro lado, a sondagem das ocupações mais antigas da região da reserva do Passaúna, área de preservação, manancial e localidade de moradia da artista. Dali emergiram seus antigos moradores, imigrantes italianos e poloneses que ali aportaram no séc. XIX e fundaram suas colônias, cujos vestígios ainda hoje podem ser encontrados.
Os dois lugares, Japão e região do Passaúna, uniram-se num entrelugar onde coabitavam o arcaico e o contemporâneo, a memória e o seu apagamento e o real e o simbólico. Nas exposições, foram mostrados quimonos de látex como peles culturais e fabulares, vestes míticas e modernas, intertextualidade de um Japão imaginado e vivido. Também livros/cadernos de desenhos, que se configuravam como cadernos de gestos, mínimas e sutis impressões da passagem pelo Japão em caligrafias de nanquim, além de pedras encontradas pelas derivas na região do Passaúna. Por último, um vídeo, dividido nos segmentos “as vestes”, “as quatro poeiras” e “as confissões”, trazia as imagens editadas como texturas, traços e indícios dos registros de percursos entre as extintas colônias justapostas a algumas imagens de Tóquio.
A outros lugares, reportou-se o projeto Stelaro, realizado no Canadá em colaboração com a artista têxtil Mariana Frochtengarten. O projeto iniciava-se pela criação de uma rede ampliada de colaboradores dentro da comunidade de Halifax cuja aproximação deu-se numa metodologia estabelecida através de conversas e escuta junto às pessoas.
Foram então coletados depoimentos em torno da escolha pessoal de um objeto significativo ou um objeto dito de afeto. No final dos encontros, foram apontados sete objetos: um bracelete, uma moeda, uma faca, um sapato, um quilt e dois colares. Dessa constelação de objetos, construíram-se, numa instalação apresentada na galeria de arte da Universidade de Halifax, os lugares da memória pessoal, familiar ou social. Cada objeto foi recriado em tecido branco e pendurado sob um grande tecido afixado no teto. Abaixo havia uma cama na qual os espectadores podiam deitar-se e, fazendo uso de óculos com lentes de um fino tecido, poderiam observar a constelação de objetos sobre ele. Como na experiência de Spirare, memória e apagamento faziam fronteira sutil e também, como naquele projeto, o lugar da memória era materializado artesanalmente nos objetos e tornava--se público na exposição.
Realizada na mesma região do Passaúna na qual foi “performada” também a ação e participação coletiva de Lago Amarelo e Spirare, a proposição Zênite reverberou em sua constituição poética os elementos de natureza, espaço preservado e potência simbólica do lugar. Zênite é o ponto de localização vertical, sobre a cabeça, coordenada única de estar/ser num território e, aqui, local de ação poética. Com esse ponto de localização, único e diverso, foram pensadas as performances dos componentes do grupo e o vídeo resultante das ações, em stop motion, foi registrado pelo artista Lauro Borges.
O projeto Zênite iniciou-se numa série de encontros e de um grupo de estudos nos quais as dez artistas leram e discutiram textos de Felix Guattari e Gilles Deleuze, entre outros, debateram filmes e se debruçaram em reflexões sobre tecidos, tecelagem e padrões, a partir das experiências de uma viagem de Laura Miranda, Maria Frochtengarten e Mônica Infante pelos centros de produção de tecidos, tinturas e padronagens na Índia. Das discussões, elencou-se um conjunto de elementos, adereços, segundas peles para serem utilizados individualmente na ação. Tecidos com padrões diversos, texturas variadas, opacidades, transparências, quase-quimonos, vestes, um tamanco/sandália de inspiração japonesa, arco e flecha e também uma máscara de capivara, animal presente na região e metáfora da vida natural do local, foram elaborados pelas artistas.
Em Zênite, o corpo que se posicionava inicialmente numa coordenada específica do mundo carregava, por sua vez, outros universos e cartografias trazidas nos tecidos e adereços sobre sua pele. Dessa forma, o vídeo da ação, realizado em stop motion, não registrava apenas o simples desenrolar das ações “performáticas” individuais, mas uma memória arquetípica de pequenos movimentos a partir de uma miríade de referências. O corpo, com outras peles de tecidos, configurava-se como constelação espraiada de sinais e um dinâmico zênite transiente. Ecoavam na proposição Zênite os gestos de coleta e reconstrução artesanal das memórias pessoais em Stelaro. Mas de forma diferente de Stelaro, cujos objetos eram paragens da memória, o elenco de objetos e adereços em Zênite representava mais acertadamente cartas portulanas indicadoras de outros horizontes e pontos de partida. De forma semelhante, assemelham-se aqui os negros traços de nanquim dos livros/cadernos produzidos no projeto Spirare, que em suas extensões gráficas transpunham para o papel um tempo-respiração-caminhada e que em Zênite, nos seus pequenos movimentos registrados em stop motion, formam urdiduras entre o corpo-movimento e o lugar – ar, plantas, terra, água, símbolos, geografias.
Uma poética premente de interrogações, dúvidas e apostas, é o que claramente podemos observar na trajetória da artista Laura Miranda. E, se voltarmos agora a nos perguntar mais uma vez como estabelecer um entendimento dessas proposições contemporâneas que nos assaltam os olhos, talvez já tenhamos algumas indicações. Primeiramente, como salientou Steinberg, tentarmos ver um pouco de nossas qualidades (desejos, vontades, utopias, sonhos, delírios) naquilo que entendemos como arte e, assim, podermos negociar algo de nós mesmos na percepção da obra, objeto ou proposição. E, num segundo momento, ao fazermos isso, teríamos a quase certeza de que aquelas obras, objetos ou proposições se colariam a nós como outras tantas e diferentes possibilidades de lugares nos quais habitaria, momentaneamente, nosso corpo-olhar.
PAULO REIS
Realiza pesquisas sobre arte brasileira contemporânea, curadoria e exposições de arte e é professor do Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná.
IN-BETWEEN PLACES IN-BETWEEN BODIES
Like Kierkgaard´s God, the work disturbs us with its aggressive absurdity, the same way Jasper Johns presented himself to me several years ago. It demands a decision in which you discover something of your own qualities1[...].
The body is the minimal space: it is in it and from it that all encounters are possible in the search for implementation and forms of action. Allowing multiple common combinations, the body fulfills the individual - this collective of experiences.
The action began when the bus picked up a group of people at the central square and from there drove a long ways until it arrived at one of Curitiba´s preserved catchment basins, located in the municipality of Campo Largo. Upon arrival, in the outskirts of the city, the group was received in a wooden house – quite rugged, with pictures all over the walls - and then led through a trail to a large lake. On the way to the lake, one could hear the sound of birds and branches and music coming from small acoustic boxes scattered around. Upon reaching the lake, one could see large yellow fabric panels hanging down from a tree and that disappeared into the water. A performer, in slow movements, came down from the tree, the same tree from where the yellow drapes hung, and slid into the water onto a plateau that was invisible to the spectators. On the plateau, the performer, with carefully studied movements, put on a look that understood, linked, and interconnected the four cardinal points, the lake, its margins, the local biological diversity, the spectators, and that space that was both so near and so far from the bustle of the urbis. At the end of the performance, everybody went back to the wooden house, where there was coffee, teas, and food waiting for them. After a brief conversation with the artists, the group was driven back to the central square. The action in question was an artistic proposal called Lago Amarelo (Yellow Lake - 2006), authored by Laura Miranda and Mônica Infante. The experience produced jointly with the spectators in Lago Amarelo, asked for nothing more than wide open senses and eyes and, according to reports, was an intense but at the same time delicate experience.
How to arrive at an understanding of the artistic experience provided by Lago Amarelo? What does this experience have in common with so many other experiences we have in countless museum exhibitions, cultural centers and art galleries, and what is it, also, that sets them apart? Contemporariness puts us face-to-face with certain artistic proposals before which we feel challenged. Looking at new artistic experiences, to follow the steps of critic and historian Leo Steinberg, may always start with estrangement. And from this first confrontation, we will make a decision on our own paths and will be able, as asserted by the critic, to take a stand in regard to the artistic proposition before us to find out something about our own qualities within the experience seen and experienced. Let´s take our chance, then.
The visual arts ask for renewed ways of understanding and, if this is already true when looking at works of art from different periods – inserted in various art history narratives – it becomes even more urgent as of the middle of the past century. The production of visual art has undergone significant transformation in the past 60 years, owing to structural issues pertaining the work of art, that is, the artistic proposal, regarding temporality, processual character, dilution of authorship, interaction and participation, statement of narratives, discursive venues, relationship between art and educational dynamics, convergence between art and the world of culture. And also, on a more historical note, due to issues arising from conceptual sources originated in the 1960s that persist until our present days.
Some artists’ practices and texts have left determining marks in the shift on how visual arts were understood in the Brazilian scenario of the 1960s and 1970s. Together, they established an understanding that in the following years undergirded, both theoretically and poetically, contemporary production. By sometimes calling themselves non-artists or proposers, the artists revised their poetic making and their role in sharing the sensitive, to use Jacques Rancière´s expression, in a renewed negotiation of meanings with the spectator, with the socio-cultural and political context, and with the narratives - hegemonic or not – of the history or art. Situations, drifts, ideological circuits, magnetized spaces, extended the exploitation of the work in the direction of complex spatial-temporal vectors. A reflection about discursivity has long pushed aside any defense of essentiality in art. To the presentiality of the work of art that lies in its own time-space, continuous and independent of the world, according to Michael Fried, in his text “Art and Objectivity”, we foresee the Copernican revolution of the 1960s, of the concretization of the work of art and with it the critic to the domesticated look, almost as in a renewed bet on the wild look proposed by the Surrealists. Thus, in the act of confronting the spectator with the artistic proposal, going back to Steinberg´s discussion, an ethical bet of fruition and intelligibility is gradually revealed, which must ensure a space of symbolic and esthetical freedom in its many experimental exercises, remembering Mário Pedrosa.
In the early 1980s, in Curitiba, many artists attuned to the Brazilian politico-social changes and to the diversity of the domestic artistic production not restricted to the so-called “back-to-painting”, often bet on experimentation and on various agency modes of making, producing, exhibiting, thinking, and reflecting about art. The formation of groups of artists was a very current strategy, like Sensibilizar (Sensitize) PH4, and Sucateando (Scrapping) Performances had a decisive presence, since the body, which had taken to the streets during the several political public rallies that spread all over the country, acquired a new meaning in art. Also very important to the city were the exhibitions organized by artists, institutional performances that created productive weavings among the mesh of museums and collective poetics, like the events Moto Contínuo (Perpetual Motion), Bicicleta (Bicycle), Para-raios (Lightening Rod), and Olho (Eye), among others. And lastly, a very significant datum was the use of public spaces, seen as a public sphere, namely by the Sensibilizar (Sensitize) group and the Moto Contínuo happening. Within this field, open and dense with experimentations, performances, street experiences or the establishment of other relationships with the art circuit, the artist Laura Miranda began her artistic trajectory and acquired, through these agency modes, some of her conceptual foundations.
In the mid-1980s, Laura Miranda developed joint projects with artists Denise Bandeira and Eliane Prolik. From theoretical research about an understanding of painting and the body as a concept and meaningful datum, the three artists produced Impressões Digitais (Fingerprints/Digital Impressions – 1985), a collective painting project carried out on a large Kraft paper surface, with newspaper clippings, and metallic reliefs. Still in this period, the performance called Fio (Thread - 1987), was also held by the three artists, and also dealt with studies on corporality and space. From the very start, Laura Miranda worked in collaboration with other artists. Certainly not in the sense of effacing her individuality, the collaborative networks were a kind of intersubjective space for ongoing discussion and negotiation. Maybe, the joint work developed by the artists already pointed at a problematizing stance vis-à-vis the narcissistic subject proposed by certain critics and the art market of the 1980s. In the 1990s, the collaborative projects reaffirmed their character of relational extension and thus, the projects Corpo Impresso (Printed Body – 1998), Fonte (Source – 1998-1999), and Serpente (Serpent – 2000) became of great importance to Laura Miranda´s trajectory.
The body, that had for so many times been part of more experimental poetics in Brazilian art, such as the first founding experiences of Neoconcretism, considered the driving force of the artistic production of Frederico Morais (1970)3, is an ever-present element in Laura´s research4. In the performance Fio (Thread), a phenomenological body was set in motion and through its movements, contractions, expansions, and gestures it defined the dimensions of space. There was an ongoing relationship between space and body, transformed as it was into the proposer of occupation, measurement, and significant weaving actions among the artists. Starting in the early 1990s, the phenomenical body would acquire ampler understandings and meanings that would invest it with historical, social, symbolic, fictional, gender, and class dimensions and inaugurate new gestures.
In Laura Miranda’s proposals, as of the 1990s, space and place conceptualization were no longer restricted to issues of her concrete existence and physical determinants. Spatial vectors of her geographic, symbolic, cultural, and social existence would be brought up to the foreground of her artistic projects. New space approaches, brought about by Miwon Kwon’s “discursive places” concepts or James Meyer’s “functional places”, would inform, among other approaches, a new approximation with the proposed action places. In their essays, these authors provided a panoramic view of changes happened in the perception of space, from the phenomenic perceptive space to the not necessarily physical space that is transversally cut by different institutional, geographic, cultural, political, or social discourses.
In the text “Relational Aesthetics”, by Nicolas Bourriaud, constructed as a panoramic view based on his overview of operating concepts for the art of the 1990s, there is a tone of necessary urgency in his affirmation of another state of art. On approaching the work of art, or better, the artistic proposal as a social interstice, the author opens up his perspective about artistic reflection onto the mesh of social life. And what interests in this analysis of some of Laura Miranda’s projects is thinking about the composition of this relational border, art and society, as poetical effort built upon the confrontation between subject and world, body and place. From the friction between body and place, in this commissure6, the artist builds her subsequent research that is conducted from collaborative experiences with various artists and relational production and experiencing networks. Some of her more recent collaborative projects, carried out among several other collectives are Spirare (2003-2004), Stelaro (2007), Lago Amarelo (Yellow Lake – 2006), and Zênite (Zenith-2010).
The word spirare, that gives name to the project has meanings connected to breath, breathe, sigh, among others, and so it leads us to cues about the proposition as it embodies the meanings of action, discovery, and trajectories. The poetic operation initially consisted in approximating two geographical, cultural, and living places. Starting from a sensitive ethnography7, or from a cartographic will8, a huge survey was conducted. On one hand, ancient and modern Japan was configured through varied readings and an initiation trip taken by the two artists. On the other, investigation of earlier land occupation of the Passaúna dam region, an environmental protection area, a catchment basin, and the place where the artist resides. Where do the previous dwellers – Italian and Polish immigrants who arrived there in the 19th century and founded colonies whose traces can still be found – come from?
Both places, Japan and Passaúna, met in-between a place, where ancient and contemporary, memory and its effacement, and real and symbolic coexist. In the exhibitions, latex kimonos were displayed as cultural and fabled skins, mythical and modern clothes, the intertextuality of a Japan that is both imagined and experienced. Also, drawing books, configured as notebooks of gestures, minimal and subtle impressions of their passage through Japan, with Chinese ink (Nankin) calligraphies, plus stones found during strolls taken in the Passaúna area. Lastly, a video, divided into segments – “Clothes”, “Four Dusts”, “Confessions” – brought images edited like textures, traces, and evidences of the registers of trajectories between the vanished colonies juxtaposed to some images of Tokyo (Japan).
Project Stelaro, held in Canada, referred to other places and started with the creation of a broad network of collaborators within the community of Halifax, whose approximation was due to a methodology established through conversations and hearings with people. Testimonials about the personal choice of a significant object or a so-called affectionate object were registered. At the end of the meetings, seven objects were chosen: a bracelet, a coin, a knife, a shoe, a quilt, and two necklaces. From this constellation of objects, places of personal, family or social memory were set up and presented in an installation exhibited at the Halifax University’s art gallery. Each object was recreated in white fabric and hung under a large piece of fabric attached to the ceiling. Underneath was a bed, where the spectators could lie down and, wearing glasses with sheer fabric lenses, observe the constellation of objects above them. Like in the Spirare experience, memory and effacement created a subtle border and likewise, in this project, the place of memory was an artisanal materialization of the objects and became public in the exhibition.
Held in the same Passaúna area, where the action and collective participation in Lago Amarelo (Yellow Lake) and Spirare took place, the Zênite (Zenith) proposal reverberated within its poetic constitution the elements of nature, preserved space, and the place’s symbolic power. Zênite (Zenith) is the vertical localization point, above the head, the sole coordinate of being in a territory and, here, the site of poetic action. This localization point, unique and diverse, gave rise to performances by members of the group and resulted in a video shooting of the actions, in stop motion.
The Zênite (Zenith) project started from a series of meetings and from a study group9 dedicated to readings of texts by Felix Guattari and Gilles Deleuze, and others, including discussion about movies and reflections on a history of textile production, dying, and patterns. From the discussions, elements, props, second skins were chosen to be individually used in the action. Fabrics with assorted patterns, textures, opacities, transparencies, quasi-kimonos, clothes, a wooden sandal of Japanese inspiration, bow and arrow, and a capybara – an animal found in the region and a metaphor of local wild life – mask were created by the artists.
In Zênite (Zenith), the body was initially positioned within a specific coordinate in the world and carried, in turn, other universes and cartographies brought on by the fabrics and ornaments on its skin. In this way, the stop motion video of the action did not just register the mere development of the individual performance actions, but an archetypical memory of small movements from a myriad of references. The body, with other fabric skins, existed as a spacious constellation of signs and a dynamic transient zenith. The Zênite (Zenith) proposal echoed the collection and artisanal construction gestures of personal memories in Stelaro. But unike Stelaro, whose objects were staging points of memory, the selection of objects and props in Zênite (Zenith) more rightly represented nautical charts, indicators of other horizons and starting points. Similarly, they resembled the black nankin lines in the books/notebooks produced for the Spirare project, which in their geographical extensions transposed to the paper a time-breath-walk that in Zênite (Zenith), in its small movements registered in stop motion, created weavings between the body-movement and the place – air, plants, earth, water, symbols, geographies10.
A poetics burning with interrogations, doubts, and bets, is what we can clearly see in Laura Miranda’s artistic trajectory. And, if we now go back to asking ourselves how to create an understanding of the contemporary proposals that jump at our eyes, maybe now we have some clues. First, as pointed out by Steinberg, trying to see a little bit of our own qualities (desires, wills, utopias, dreams, deliriums) in what we understand as art will enable us to negotiate something of ourselves in the perception of the work, object, or proposal. And second, by doing so, we would be almost certain that those works, objects or proposals would cling to us like so many other different possible places where our body-look would momentarily inhabit.
PAULO REIS
Researcher devoted to contemporary Brazilian art, curatorship, and art exhibitions, and professor of the Arts Department of UFPR.
Este texto sobre a obra de Laura Miranda situa-se dentro de fronteiras definidas. Sua delimitação de abrangência, começará com algumas de suas questões artísticas de meados dos anos 80 e seguirá até seus últimos trabalhos com impressões do corpo sobre papel. Neste período é que se inaugura a construção da poética da artista e no qual se verá também seu amadurecimento. Um alinhamento histórico será elaborado juntamente a problemáticas artísticas recorrentes em sua trajetória.
O começo dos anos oitenta, período de formação da artista, viu surgir o embrião de um movimento nas artes plásticas, que viria a ser chamado genericamente, no Brasil, de "Geração 80". A característica marcante da produção plástica dessa geração foi incluída no que se considerou como a "volta da pintura", um fenômeno brasileiro e internacional. Porém, já a partir da segunda metade da década de 80, na análise da crítica paulista Aracy Amaral1, teve início uma outra configuração artística brasileira. A emergência da escultura, do objeto e da instalação se fez sentir e o fazer pictórico dividiu atenções com outras manifestações expressivas.
No trabalho coletivo de 1985 "Impressões Digitais" (Sala Miguel Bakun), realizado por Laura com as artistas Eliane Prolik e Denise Bandeira, pôde-se ter um primeiro referencial2 para o pensamento plástico da artista que se constituirá juntamente com uma pesquisa do gesto e do movimento. Nesse projeto coletivo havia uma vontade de se ampliar as fronteiras do corpo (sua extensão e consciência) e as da arte (sua circulação e linguagem). A pintura sobre os grandes papéis construía-se sobre um impasse, no qual a tensão era dada por sua autoria coletiva e pela expressão de um gesto que queria sair do plano. Numa notícia de jornal da época pôde-se ler uma declaração das artistas sobre o trabalho: O gesto é extensão, presença e linha condutora, interação do espaço e vibração emocional.
Em 1987 aconteceu a mostra "Sopro" (Casa Romário Martins). Lá foram mostrados os primeiros objetos tridimensionais da artista realizados em fibra de algodão, e outros em vidro soprado. Inquirições de Laura sobre vazio, cheio, corporalidade, sujeito e objeto vão se abrir nas elipses desses trabalhos, que representam seu primeiro amadurecimento, numa exposição individual.
Um desdobramento de sua pesquisa ocorreu nesse momento, com uma idéia de transparência e respiração. Se respiração está diretamente relacionada a corpo, transparência está ligada a matéria. Houve uma preocupação da artista em pensar o corpo físico e o corpo que é pura potência, ação e movimento e, também, a matéria bruta e a matéria transparente em vibração nos seus limites de existência.
As obras em vidro apresentavam suas formas numa fronteira entre o geométrico e o orgânico. Elas remetiam a formas de coração, pulmão, olho, mas lembravam também círculos ou quadrados. Sua confecção era artesanal, isto é, resultado de formas determinadas por moldes que ganhavam sua existência através do sopro do artesão. Na artesania da confecção dos vidros, a atividade do soprar tem reverberações maiores. O ato do sopro reverbera em direção a outras significações: em latim, ele é espírito e vento, em hebraico, é pneuma, alma e hálito e em grego, é respiração, borboleta, ar, transparente, incorpóreo, sutil, penetrante, inextingüível e agente4. E foi a partir daí que começaram a ser pensadas pela artista as relações entre sujeito e objeto, homem e mundo, visível e invisível. O vidro é também um elemento que tensiona sua própria materialidade, pois ele "quase" não existe ao misturar suas formas com o ambiente e com sua própria sombra.
Uma questão importante na poética de Laura apareceu nas fibras de algodão dessa sua primeira individual. Ela estava ligada ao ato de urdir (tramar) e ao de esgarçar. Nesses trabalhos com fibra de algodão, Laura fez o esgarçar das fibras caminhar no sentido de se conseguir delas uma transparência, semelhante aos vidros soprados.
Num outro momento, nas exposições de 92 e 94 (Funarte/RJ e MAC/PR), a artista construiu uma urdidura de pontos, nas perfurações da manta de chumbo e nos pontos criados por agulhas colocadas em placas de acrílico. Ficavam evidentes mais uma vez duas idéias complementares: urdidura e esgarçadura. Mas se, anteriormente, nas fibras, a transparência era perseguida com o esgarçar, aqui, nas mantas de chumbo, a urdidura era sua chave. Nos chumbos o que era maciço, virava transparente. A pele do chumbo respirava luz (como nos vidros). "O chumbo era varrido na superfície e se tornava "topos" (do corpo) com saliências e reentrâncias, porosa como uma pele, ganhava opacidade e profundidade. Quebrava-se a rigidez do plano e da malha geométrica5".
As tramas com agulhas nas placas de acrílico e na própria parede da arquitetura (Salão Paranaense/94), apresentavam uma aparente geometria colocada sobre as coisas, que iriam organizar o espaço da parede e o das placas. Porém era uma urdidura em desmoronamento, pois havia uma indistinção entre o que era agulha e o que era sombra e o que era trama e o que era sugestão. Essas agulhas e suas sombras eram ponteiros de bússolas que apontavam para uma trama sem norte e que estava aberta a todas as direções. Havia um caminho sempre circular da trama ao esgarçar e deste ao retecer.
A artista pensou as agulhas sobre superfícies, fossem as da paredes ou as das placas de acrílico, como uma rede de eventos e campo de potencialidades6. E por serem um campo de potencialidades eram como um campo vazio inaugurado, pronto a ser preenchido, vivido, amado, odiado ou pensado. Era como se o vazio, campo de possibilidades, fosse uma constante em nossa equação visual e que de sua resolução (que é sempre eventual, momentânea, histórica, instantânea) surgisse a presença das coisas na trama do mundo.
Na série de esculturas realizadas com vergalhões de ferro (MAC/PR 1994), mais do que desenhos no espaço, aquelas linhas sólidas queriam também guardar o desenho de um gesto do corpo. Podemos pensar em trabalhos anteriores que já estavam preocupados em resgatar essas impressões do corpo, como os vidros soprados da exposição de 87 que, ao conjugarem o fluxo do ar insuflado e a transparência do próprio vidro, eram já o registro de um gesto. Aqui, o movimento, resgatado pelos vergalhões de ferro traduziam a extensão e os limites do corpo. O que estava em questão, nesses trabalhos, era também uma idéia de ocupação de um espaço que, ao ser cruzado, separado e cindido pelos vergalhões, organizava-se segundo um desígnio/desenho do corpo. O corpo é a trama do espaço.
Nos anos de 95 e 97 (Mostra da Gravura de Curitiba e Funarte/RJ) começou a construção das impressões do corpo molhado sobre papel de arroz. A pele da água sobre a pele do papel estava orientada no sentido de não apenas guardar o corpo, mas a impressão de seu movimento. A transparência vítrea da pele engastada no papel pela água fez transparecer, mais do que suas singulares geografias, sua respiração e vibração. Laura Miranda queria pensar os movimentos e o fluxo deste corpo no espaço e suas possibilidades de atuação no mundo e nas possibilidades da arte absorver este movimento. O movimento corporal esgarça os espaços do papel.
Atualmente, as impressões do corpo encaminham-se para pesquisas com materiais e estudos sobre o conceito de desenho7. Grandes extensões de papel são dispostas no chão como um laboratório do espaço das coisas. Ou, mais acertadamente, como uma parcela do próprio mundo no interior do ateliê, espaço da pura potência de movimento onde se desenham seus atos e sua marca. Há grandes impressões em pó de carvão e grafite em papéis imensos. E, nos trabalhos mais recentes, há um processo de se voltar fisicamente aos espaços externos ao se enterrar as folhas de papel impressas, retirando-as após alguns dias. Ao papel é agregada uma delicada película de terra - urdidura do mundo sobre um corpo.
Weaving and tearing
Although their work differs in many aspects, Laura Miranda realized that, by exploring the distance between them - Caldas's suspension/tension of matter, and Clark's concept of matter flowing through time and space - she could start to give her work a poetry of its own.
Of course this insight did not lead herto layout a plan and then carry it out. Like everything else, those two artists' works are also things of (and in) the world, and therefore likely to be equally absorbed in the realms of subjectivity and ambiguity in which Laura Miranda dwells.
Just to get a glimpse of Laura's early work, trying to synthesize those two opposite aspects of Brazilian art - coupled to her former experience in the dance scenario - we must go back to her early iron sculptures.
In them, a floating gesture was drawn with metal wires, a gesture that _ under pressure and subjected to the imponderable grandiosity of the surroundings responds with a tense fremitus, filling the place with meaning: wire which is at the same time body and scar, indicating an intent to potentiate reality giving it new meaning.
From the same period, other very peculiarworks stand out: by linking together metal threads she creates precarious and tense forms susceptible of changing at any slightly stronger pressure from the surrounding environment. Formally, those sculptures evoke the memory of some of vvoltercio Caldas's works, and this formal relationship not only helps us understand this artist from Rio de Janeiro a little better, but also points out the direction Laura Miranda's work will take.. And since the objects must be handled to achieve new configuration, one can surely feel the influence of Lygia Clark's articulated objects.
More or less at the same time (perhaps a little earlier), it was easy to see from the artist's glass objects plain, rough forms thatfor her the body was a capsule which, despite its precarious configuration, transforms and is transformed by the surroundings. Those obiects remind us of lungs filled with air and light, that in their formal/material simplicity remind us of Lygia Clark's relational objects, but also of some of vvoltercio Caldas's works because of their silent and intangible nature.
Meaning that although those objects reflect and are cut across by the world and by life flowing by, they are not there to be handled and touched in a cathartic manner. No, they keep a mysterious integrity that protects or prevents them from being consumed and soon discarded.
Back in the outset of her career, another series of pieces stands out, marking a point in her trcjectorv like an intersection between the work of Caldas and Clark. A synthesis of the work of them both, and the introduction of a new strong influence in her work: Mira Schendel. (After all, for someone who grasps her work as a tense punctuation of (and in) the world, Mira Schendel's work is definitely fundamental ... )
I am now referring to Laura Miranda's cotton fiber works. In them, which are in fact the records of her action on matter, the fiber is frayed until it reaches the breaking point, resembling a filter of light. Pushed to their limit, those pieces are like bodies, or skins, that shunt the forces of perceived reality (and have them interact).
At what level could Schendel's experience have broadened Laura's own back at the outset of her career?
Mira's work seems to have pervaded Laura's art, perhaps as a different synthesis of Caldas's and Clark's plastic works.
Sem dúvida, o melhor comentário sobre uma obra de arte é uma outra obra de arte. E, em certa medida, todo artista quando jovem assim procede; num primeiro momento, ao tomar contato com as obras de colegas mais maduros (e delas sofrer impacto), a conseqüencia é a produção de um trabalho que, guardando certos elementos da obra que o mobilizou, propõe novas possibilidades que não apenas ampliam a compreensão da(s) obra(s) de seus antecessor(es), mas também estruturam a visualidade, da sua própria produção. É por isso que, para melhor entender Coulbert, é necessário olhar Cézane e vice-versa...
Por outro lado e com o passar do tempo -, na produção de um mesmo artista é possível perceber um fenômeno de tipo semelhante: o trabalho mais recente tende sempre a ser um comentário daquele que o precedeu e, ao mesmo tempo, traz em si as premissas para ser melhor compreendido naquele outro, ainda em devir...
Assim sendo, como tecer qualquer consideração sobre a trajetória de um artista quando o próprio conjunto de sua produção (e de seus antecessores) tendem a ser os melhores comentários sobre ele?
Os parágrafos acima surgem como preâmbulo para introduzir algumas obras que, em tese, poderiam sintetizar a trajetória de Laura Miranda no campo das artes visuais.
Mas como traduzir em palavras uma produção como a desta artista de Curitiba, que se constitui basicamente de uma espécie de urdidura entre ( e exatamente entre) o espaço e a matéria, como uma cicatriz a flor da pele do mundo?
A metáfora usada nesta última frase deriva, justamente, do sentimento causado frente ao conjunto de obras de Laura Miranda. E se tal frase guarda em si algo de poético (tão incomum nos textos deste autor), é porque ela preserva ainda o impacto daquelas obras e é, de alguma maneira, talvez sua única tradução possível. " A única maneira de se aproximar de um poema é produzir outro..." , disse alguém.
Daqui para frente, oque segue tenderá sempre a se constituir num discurso que, apesar de marcado pela emoção do trabalho do artista, vai querer ser objetivo, correndo o risco de assumir um teor quase "iluminista"... Tentar iluminar, clarear, pela descrição e análise aquilo que, por definição, é obscuro e ambíguo, eis aqui o perigo que sempre corre qualquer texto sobre qualquer artista: querendo configurar-se como uma tradução objetiva da poética do artista, torna-se, muitas vezes, a mais cruel das traições.
É neste sentido que, se a frase "... uma produção (...) que se constitui basicamente de uma espécie de urdidura entre (...) o espaço e a matéria, como uma cicatriz a flor da pele do mundo..." é uma tradução com alguma chance de se alinhar de maneira mais próxima da produção de Laura Miranda, o texto que segue correrá o risco de ser uma espécie de traição.
Com formação na área de dança, Laura Miranda parece, desde o início, ter tido muita consciência de seu próprio corpo como uma espécie de cápsula entre duas partes de um mesmo e único universo: aquela que fica no limite entre o interior e o exterior, local onde as forças do mundo se processam e ganham novas potencialidades.
Por que a dança teria motivado tal consciência? Muito provavelmente pelo fato de que, pelo deslocamento ritmado de seu corpo no espaço e no tempo, Laura tenha percebido que, por meio da respiração e dos órgãos dos sentidos, interior e exterior, existem como um todo e que o corpo do bailarino (e, por extensão, os corpos de todos nós) é o laboratório ativo onde o mundo readquire sua integridade.
Junto com esta bagagem vinda da dança - ou, talvez, por causa dela mesma -, Laura Miranda, quando iniciou seus trabalhos na área das artes visuais, pareceu ter estado muito atenta à obra de dois artistas brasileiros fundamentais da segunda metade do século XX: Waltércio Caldas e Lygia Clark.
Por distantes que estejam em alguns aspectos as obras dos dois, Laura Miranda parece ter percebido que, se explorasse aquilo que os distancia - o conceito de suspenção/tensão da matéria, no primeiro, e o conceito de fluxo da matéria no tempo e no espaço, na segunda - ela poderia começar a estabelecer uma poética própria.
É claro que esta compreensão da artista não se deu como um programa a ser refletido previamente e executado na sequencia. Como todo o resto, as obras dos dois artistas também são coisas do (e no) mundo e, portanto, passíveis de serem absorvidas, igualmente, nos planos da subjetividade e da ambiguidade, onde Laura Miranda trafega.
Para começar a ter uma idéia do trabalho inicial de Laura, como uma busca de síntese destes dois opostos da arte brasileira acoplada a sua experiência anterior na área de dança -, seria interessante lembrar suas esculturas em ferro, de início de carreira.
Nelas, o fio de metal traça como que um gesto no espaço, e tal gesto, ao ser pressionado (e submetido)à grandiosidade imponderável do espaço que o cerca, responde com frêmitos tensos, potencializando de significados o entorno: o fio é corpo e, ao mesmo tempo, cicatriz índice de uma intenção de potencializar, de conferir um novo significado à realidade.
Ainda dentro deste mesmo momento, são muito particulares outras peças da artista nas quais, unindo fios de metal, ela cria situações em que a forma se constitui de maneira precária e tensa, transformando-se a qualquer pressão mais forte do entorno. Formalmente, essas esculturas remetem a certas obras de Waltércio Caldas -e esse parentesco formal ajuda a entender um pouco mais o raciocínio do artista carioca - ao mesmo tempo que já aponta para onde Laura Miranda irá direcionar seu trabalho... Mas, por outro lado, a necessidade de manipulação para que a peça se transforme e ganhe outra configuração não deixa dúvidas que traz em si ensinamentos dos objetos articuláveis de Lygia Clark.
Mais ou menos na mesma época (um pouco antes, talvez), em objetos de vidro feitos pela artista - formas meio toscas, simples - é evidente a noção de corpo como cápsula que, apesar de sua precária configuração, transforma e é transformado pelo entorno. Essas peças lembram pulmões repletos de ar e luz que, pela simplicidade formal/ material lembram os objetos relacionais de Lygia Clark, porém guardam um silêncio e um caráter de intangibilidade muito próximo do raciocínio percebido em alguns trabalhos de Waltércio Caldas.
Ou seja: aqueles objetos, mesmo refletindo e sendo atravessados pelo mundo e pelo fluxo da vida 1 , não estão ali para serem experimentados e manipulados de maneira catártica. Não: eles guardam para si uma integridade misteriosa que se apresenta como dificuldade (ou impossibilidade) de serem consumidos e depois descartados.
Dentro deste mesmo momento de início de carreira, desponta outro grupo de trabalhos que igualmente denúncia este estágio da trajetória de Laura Miranda como uma espécie de interseceção entre as poéticas de Caldas e Clark. Síntese da poética de ambos e introdução de uma outa grande influência no trabalho inicial de Laura: Mira Schendel... ( Afinal, para alguém que entende o próprio trabalho como uma pontuação tensa do (e no) mundo, a obra de Mira Schendel também tem que ser fundamental...).
Refiro-me aqui a peças realizadas pela artista com fibras de algodão. Nessas obras - na verdade, os registros de sua ação sobre a matéria - a fibra é esgarçada até atingir a fronteira mínima que garanta a continuidade de sua integridade como plano, como espécie de filtro de luz. No limite, essas peças são como corpos, ou peles, que desviam (fazendo interagir) as forças da realidade percebida.
Em que a experiência de Schendel pode ter ampliado aquela de Laura, que então se iniciava?
A obra de Mira parece ter penetrado na poética da artista, talvez, como exemplo de uma outra possibilidade de síntese entre os raciocínios plásticos de Caldas e Clark.
Laura parece ter aprendido com Schendel que o trabalho de arte que pretenda ser, ao mesmo tempo, pontuação sensível do (e no) mundo e filtro/veículo das potencialidades das energias do entorno (e daquelas contidas em si), não necessita manifestar-se nem por meio de objetos de forte solidez material e/ou histórica no campo das artes, nem precisa trazer em si o conceito de manipulação devoradora e catártica do espectador.
A obra de Mira Schendel, no limite entre a presença e a ausência, o eterno e o volátil, o filtro e o sorvedouro, apareceu como uma nova possibilidade para a continuação da construção da poética de Laura Miranda.
Desses primeiros grupos de trabalhos mas, com maior intensidade, os últimos, talvez, - surgem as próximas proposições da artista, em que sua produção parece assumir-se exatamente como peles que envolvem e são envolvidas pelo mundo.
As chapas de metal negro atravessadas de luz por infinitos furos são os negativos, por assim dizer, das placas de acrílico com áreas fechadas por infinitas agulhas que barram, desviam, dobram a luz...
Nessas séries, Laura Miranda vai aos poucos se distanciando daquelas influências tão fundamentais no início de sua carreira e, muito embora aqui e ali, ainda possa ser notada a presença das poéticas destes três artistas mencionados, não resta dúvida de que esses trabalhos novos, antes de serem meros sucedâneos dos trabalhos de seus antecessores, já se configuram como algo até então insuspeito dentro do quadro da arte.
Reafirmando: mais do que os anteriores, os objetos de metal e os de acrílico e metal de Laura Miranda, além de proporcionarem a ampliação da compreensão das obras e proposições daqueles artistas mais velhos, já são os elementos fundantes da poética da artista.
Percebe-se, daqui para frente, nos trabalhos de Laura Miranda, algo impensável nas obras de Caldas, Schendel e Clark: a extrema discrição.
Por mais sutis que sejam os trabalhos dos dois primeiros, por mais formalmente despretensiosos que sejam os objetos relacionais de Lygia Clark, a produção mais madura de Laura Miranda caracteriza-se por uma busca de profunda circunspecção, como se apenas na surdina, na prudência e na reserva no uso dos materiais e na colocação de seus objetos no espaço, sua poética podesse se manifestar.
As obras de Laura parecem não buscar se impor no território das artes visuais como verdades incontestáveis. Elas não guardam - ou, premeditadamente, não transmitem com intensidade -, a necessidade de ousar, que a maioria dos artistas sentem ao povoar o mundo com seus trabalhos. Não. Seus objetos se colocam no mundo como sutis e diáfanos obstáculos, pequenas escoriações, esfolamentos, postos frente a nossa percepção...
... Um momento especialmente interessante no trabalho da artista são aquelas espécies de bichos (produzidos para olhar ou para ferir, numa recusa ao consumo catártico), feitos de pergaminho e agulhas.
Se obviamente, são uma conseqüencia daqueles planos de acrílico com metais concebidos anteriormente, esses planos de pergaminho sustentados precariamente pelas agulhas são possuidores de uma autonomia problemática: nem esculturas e nem propriamente objetos (no sentido convencional do objeto "de arte"), eles nos obrigam, de novo - e, talvez, com maior ênfase - a pensar o trabalho do artista como cicatrizes vivas, à flor da pele , agindo como sinais de uma presença que exige ser explicitada, por que ela mesma nada explicita, contentando-se apenas em ser.
Já em seus livros mais recentes - em que as folhas impregnadas de histórias sobre sua própria constituição também guardam a aparência de feridas -, Laura parece querer reintroduzir na sua poética os elementos corporais que denunciam sua origem artística no campo da dança.
Unidas precariamente, sob a ação do "leitor", elas realizam evoluções tíbias no espaço para, em seguida, se depositarem, umas sobre as outras, propondo outras dobras e outros desvios...
Tradução, traição...
Como todas as obras de arte verdadeiras, os trabalhos de Laura Miranda reivindicam sempre o contato direto, um olhar que as penetre e que deixe ser penetrado por elas, evitando esgotar-se em qualquer tipo de interpretação.
1Além de serem feitos de vidro (atravessados, portanto pela luz), esses objetos são vazados e, dentro deles, o ar circula.
And, to some extent, every artist does it early in their career. Impacted by the work of more mature colleagues, the work produced by a new artist not only keeps certain elements of the work that had an impact on them but also enables better understanding of their predecessor's work and keep characteristics of their own. So, to better understand Corbett, one must look at Cezanne and vice-versa ...
On the other hand, as an artist matures, a similar phenomenon occurs: the most recent work always tends to be a comment on its predecessor, and - atthe same time - enables better understanding of its successor ...
Thus, how can one comment on an artist's trojsctorv, when the whole set of her works (and those of the artists that influenced her) speak better of her forthemselves?
The paragraphs above were [ust a preamble to the following comments on some of Laura Miranda's works, which theoretically can summarize her steps on the path of visual arts.
But how can one put into words the work of this artist from Curitiba, basically some kind of weaving between (and exactly between) space and matter, like a scar on the skin of the world?
The metaphor derives from the impact caused by Laura Miranda's works. And if it sounds poetic (so unusual in my text), it is because I wrote it under the impact of her works, and perhaps it is the only possible way to convey that feeling. "The only way to get close to a poem, is to make another ... " someone once said.
From this point on, these comments, although marked by the feelings conveyed by the artist's work, tend to be objective, nearly "illuminist" in content.. In the attempt to enlighten, to clarify by describing and analyzing something that is, by definition, obscure and ambiguous, any text about any artist runs a risk: instead of objectivelv depicting the artist's poetic work it may cruelly betray it.
And if the phrase above "a work that is basically some kind of weaving between (and exactly between) space and matter, like a scar on the skin of the world" has any chance of interpreting Lauro Miranda's work, the text thatfollows runs the risk of being some sort of betrayal.
With a background in dance, Laura Miranda seems, from the very start, to have perceived her own body as some sort of capsule between two parts of the same and unique universe: something between the interior and the exterior, a place where the forces of the world are processed and reach new potentialities.
Why would dance have raised such awareness? Perhaps through the rhythmic movement of her body across space and time, Laura may have realized that, by breathing and sensing, the interior and exterior are but one, and that a dancer's body (and the bodies ofthe rest of us as well) is the active lab from which the world draws its integrity.
Along with the baggage she brought from her dance, or perhaps because of it, when Laura Miranda began working in the field of visual arts, she was very attracted by the work of two important Brazilian artists of the second halfofthe 20' century: vvclterc.o Caldas and Lygia Clark
Mira Schendel's work lingering in that zone between presence and absence, the eternal and the volatile, the filter and the vortex gave Laura Miranda the opportunity to go on building the poetry of her own work.
Following those first series (perhaps more so the latest works), the artist introduces new concepts, and her pieces seem to resemble skins that enwrap and are enwrapped by the world.
The black metal sheets pierced by countless holes filtering light, like negative prints of the acrylic plates full of countless needles that ban, shunt, and bend light. ..
With those series, Laura Miranda progressively leaves behind the influences that were so vital early in her career, and although here and there the mark of those three other artists is still noticeable, clearly her new works are not merely an ersatz of their former pieces but rather something unprecedented in the realm of Art.
Once again, more than Laura Miranda's previous works, her metal, and acrylic & metal objects are not only a key to understanding the work of those older artists, but also the cornerstone of her work's poetry.
From this point on, Laura Miranda's works convey something inconceivable in Caldas, Schendel and Clark: extreme discretion.
As subtle as Caldas' and Schendel's works may be, as formally unpretentious as Lygia Clark's relational objects may be, Laura Miranda's more mature works are characterized by the search for deep circumspection, as if only by the stealthy, prudent, and reserved choice of materials and placement of her objects in space could she express her Art.
Laura's works don't seem to impose themselves in the realm of visual arts as unquestionable truths. They don't need or don't convey the need to dare, like the works of most artists throughout the world do. Not these. Laura's objects prefer to be subtle and diaphanous obstacles, minor lacerations, scratches, that place themselves before ourgrasp ..
A particularly interesting moment in Laura's trajectory is the animal¬like abstractions made of parchment and needles (produced to be looked at or to hurt, in refusal to cathartic consumption).
Obviously, if they are a consequence of those former acrylic and metal planes, these parchment sheets precariously supported by needles are a problem to define: neither sculptures nor really objects (in the conventional sense of "Art object"). They force us, once again and perhaps more emphatically, to see Laura's work as throbbing scars, the signs of a presence that demands to be explained, because it is not self-explanatory, it simply exists.
And in her most recent books -- of which the pages are impregnated with stories of their own composition and also resemble wounds -- it seems Laura is trying to reintroduce in her work the body elements that reveal her artistic origin in the field of dance.
Precariously united by the "reader's" touch, they perform frail evolutions in space, and soon fall one overthe other, proposing new pleats and other deviations ...
Translation, betrayal.
Like any true work of art, Laura Miranda's works claim for an intimate contact, for a look to penetrate them and to be penetrated by them, refusing to yield to any kind of interpretation.